fragmentos críticos


texto: Vários

INVENÇÃO E MECHANICA

O trabalho do artista plástico Claudio Tozzi é notável, pois supõe e suporta tantas teorias, que desafiam uma interpretação pertinente, que descrever seu trabalho é correr o risco de cair no vazio. Além do mais, sua produção permanece atual aqui, já no terceiro milênio, apesar de ignorar muitas escolas e estilos (ou manias) consagrados no final do século passado.

Como personagem artístico, sua discrição, em vez de poupá-lo, provocou histórias e lendas que deliciaram os contadores de casos do círculo das artes. Na década de 70, diante de um quadro com tema de parafusos, alguém disse: “Ele estuda na FAU”, e outro retrucou: “Não é na Poli?”. Mas o que mais gerou controvérsias foi sua maneira de tratar as cores como retículas: o que para alguns era trabalho de pincel, para outros eram marcas impressas com silk-screen e para outros ainda, eram impressões feitas com rolos tipográficos tratados e todos tinham absoluta certeza de saber a verdade.

Um fato porém sempre foi evidente, sua obstinação em trabalhar com a forma. Mesmo quando se agradou da pop-art, sua atenção era dirigida, apreensivamente, para a forma e sua temática contemplava mais o social do que o consumo (apanágio da pop).

Sua pintura flerta com a técnica e parece emergir da mecânica e dos achados da ferramentaria e das artes gráficas reprodutíveis, como se, num desafio a Walter Benjamin, fizesse do reprodutível a obra única. Esta pode ser sua face mais aparente, mas não é só isto, pois é um trabalho que finge domínio técnico, para buscar na forma sua energia poética.

É como se houvesse um embate inconciliável entre a regra e a invenção: a regra ditando ordens para a produção e a invenção subvertendo normas para descobrir a estrutura.

Parece, às vezes, uma exposição retórica, onde metáforas e parábolas fingem comandar um discurso plástico. Mas estas figuras de linguagem (metáforas e tantas outras) são apenas os motivos aparentes e ilustrativos de uma produção que, por caminhos próprios e, às vezes, até secretos, contam outra história.

Por isso é uma pintura que faz parecer real aquilo que ela entrega ao primeiro olhar. E este olhar cria na imaginação do observador a ilusão de que o tema é o objetivo, quando é apenas o meio ou a ferramenta para contar e mostrar as invenções, que são muitas e possíveis na forma.

Salta aos olhos a estrutura, que pode ser conhecida ou imaginada e, é percebida algumas vezes por sutis mudanças de tons, e outras, por linhas, vincos, cortes ou mesmo até interrupções da superfície.

Estas obras têm uma pele, melhor, uma epiderme, que, como estrutura complexa e tátil, inventa-se em cada forma. É esta epiderme, aparentemente superficial, que qualifica o objeto. Tem-se, assim, que a superfície desta é a mesma da tela. A obra já não mais representa, ela é a própria forma. Por isso, muitas vezes pode afastar-se do retângulo tradicional e da superfície bidimensional do suporte.

Esta retícula é tramada como um tecido; onde um pequeno ponto de cor pode ser somado a outros, ou pode ser obscurecido por outros, ou simplesmente marcar um sobretom dos outros. E ainda a característica de que a aparência e a estrutura de uma superfície tramada são uma só, tal como a superfície de um granito exibe sua estrutura ígnea.

De início parece a téssera de mosaicos, mas não é, porque estes pequenos retângulos que criam imagens isolam-se obedecendo a um desenho pre-determinado e não misturam cores. Nas retículas não há desenho, mas a preocupação de criar a matéria da forma.

Assim, as cores são distribuídas com uma habilidade manual tão precisa e pontual, que o efeito gerado parece produto mecânico. Não importa o meio empregado, importa o resultado, que é a camada celular que, num salto qualitativo, está muito acima da soma de cores empregadas. Agora é massiva e densa, não mais reticular.

Esse pequenos sinais de tinta têm desenhos variados, umas vezes pequenos círculos, outras, figuras irregulares e riscos. A densidade da tinta também difere. É densa e cobre outras cores em alguns lugares sendo que, em outros, é liquefeita, fundindo-se com as imersas.

Como pontos de uma tessitura, mudam constantemente, submergindo aqui, emergindo ali; pontuando, entrelaçando e flutuando, simulam superfícies mas criam matérias, que têm densidades variadas.

Matérias que podem ser lisas ou ásperas, macias ou rígidas, sóbrias ou reluzentes. E como massas suportam as estruturas figuradas. Como na geologia, apresentam camadas estratigráficas, que permitem muitas leituras.

Parece que o domínio do tato é o senso fundamental para ler e sentir essas substâncias corporais, porque elas são inseparáveis das figuras que as contêm. A matéria só existe na forma e a forma nasce da matéria.

É neste instante que se percebe a habilidade, pois todos os vestígios da mão são apagados pelo resultado. Neste momento, pode-se falar em mechanica, mas no sentido grego da palavra, que é imaginar, inventar, criar e produzir com arte. Aqui, seu veio poético.

Luiz Munari