Matérias e Críticas
Geral
- Poesia aberta para balanço (Claudia Thevenet)
- A licença poética do filósofo (Yudith Rosenbaum)
- Intervalo e Enigma (Salete de Almeida Cara)
Poesia aberta para balanço
Claudia Thevenet
O filósofo Rubens Rodrigues Torres Filho lança seu sexto livro de poemas, 'Novolume'.
"Caríssimo Rubens, agora sim, já posso lhe dar os parabéns com conhecimento de causa. Comprei
'Novolume', caprichosíssimo em todos os aspectos. A capa do Waltércio, sem ser figurativa,
consegue, além de belíssima, dizer o que o título diz. 0 ovo, em áspero contraste com a
pequena pedra e com o fundo rochoso, o novo deflagrado, além de pelo próprio ovo, pelo
pano recém-aberto, o lume presente no contraste da luz do ovo com o escuro da pedra e
do fundo rochoso. Escuto até o alto volume do silêncio de tudo que, na capa, no título,
quer se manter enigmático".
As congratulações feitas por carta pelo amigo e poeta carioca Alberto Pucheu servem de referência
ao poeta, escritor, tradutor e historiador da filosofia moderna Rubens Rodrigues Torres Filho
para definir o espirito de "Novolume", seu sexto livro de poesias, recém-lançado pela editora
Iluminuras.
- Essa interpretação do Alberto reflete as coisas que estão dentro do título, inventado por mim.
Basicamente é isso: tudo reunido no volume. Ao mesmo tempo, diz-se que um livro vem a lume quando
ele é publicado. "Novolume" seria portanto uma reedição, um sexto livro que fagocitou os outros
cinco - define o autor.
Prefácio compara o autor de "Novolume" a um trapezista
Com projeto gráfico da capa assinado pelo artista plástico carioca Waltercio Caldas, a publicação,
além de trazer 12 poemas novos escritos entre 1994 e 97, compila cinco publicações anteriores do
escritor paulista - "Investigação do olhar" (1963), "O vôo circunflexo" (1981), considerado o
melhor livro de poesia do ano pela Câmara Brasileira do Livro, "A letra descalça" (l985), "Poros"
(1989) e "Retrovar" (1993). Mas inclui também poemas avulsos e inéditos antigos e ainda 11
traduções de poesias de Rimbaud, Goethe e Nietzsche, entre outros. "Novolume" é um balanço e
uma reunião da obra poética do escritor. Uma idéia que já vinha sendo maturada de uns anos para
cá.
- Faz um tempo que estou com esse projeto. Quando publiquei "Retrovar", tinha pensado em fazer
"Retrovar e o resto", mas não era o momento oportuno, nem era viável economicamente - lembra
Rubens.
No prefácio à edição, um texto de Fernando Paixão compara o poeta a um trapezista: "Como num
trapézio, a oscilação entre o alto e o baixo fecha um círculo envolvendo tensão e vertigem.
Vamos ao circo e sentimos o frenesi, a arte do trapezista se desenha no intervalo. Sabendo
disso, Rubens soube renunciar conscientemente à possibilidade de uma poética monotonamente
elevada", diz o texto. Rubens tem sua interpretação da metáfora:
- Todo esse texto saiu dessa intuição. Ele criou uma imagem a partir da coisa do salto mortal,
de um vôo meio circunflexo, da respiração - diz. Já a matéria-prima para construir seus versos,
Rubens garimpa no imaginário, para tecer, aos poucos, sua arquitetura de palavras. Sem anotações
prévias ou relação direta com a realidade. A bússola da inspiração oscila de acordo com a maré
da emoção.
- Não anoto nada, quando me sento com o caderninho já estou com o poema pronto na cabeça. Ele
começa a se formar e, de repente, você descobre que está com um verso na cabeça e, a partir
desse verso, pode puxar um fio que gera uma associação de idéias. Meus personagens são pura
ficção, mas podem ter como ponto de partida uma situação elaborada a partir de um fato real -
explica.
Um exemplo é o segundo poema do livro, "Nítido céu": "Nítido céu plural estacionado/ no ângulo
das nucas que flexionam/ alguns anjos pedestres como somos/ ao empinar narizes sem soberba". 0
tema, colhido de um passeio em noite estrelada, é fruto de um simples olhar para o céu.
Depois vem a compilação dos outros cinco livros, seguida do capítulo de avulsos e inéditos antigos,
dedicado àquelas obras publicadas em jornais e revistas ou inéditos, como "História do poeta
apaixonado", de 1959. Entre os poemas novos está "Curriculum":
"Ser qualquer um mas ter alma de nobre
Correr perigos sem temor indigno
Paquerar a princesa apetitosa
Vencer o ogro, transformar o rei em sogro
e envelhecer amado pelo povo".
A parte reservada às traduções parece ter constituído a tarefa mais árdua de "Novolume". A
seleção de obras traduzidas baseou-se num critério prático:
- Estes foram os únicos poemas que eu consegui traduzir. Acho que traduzir poesia é muito difícil,
você tem que ter muita predileção por um poema, saber de cor, gostar muito para conseguir entrar
nele. Essa tradução que eu fiz do Rimbaud, "As catadoras de piolhos", eu devia ter uns 25 anos
quando tentei pela primeira vez e não consegui traduzir. São poemas antigos, têm que ter rima,
mas a língua não tem o mesmo ritmo, até chegar numa coisa parecida é complicado. Eu sou tradutor
de prosa, traduzo filosofia. Os poemas que eu consegui traduzir estão aí - conta.
Quanto às associações entre filosofia e poesia feitas quando se comenta o seu trabalho, Rubens é
categórico:
- Prefiro separar. Acho que essa tendência de ficar procurando filosofia na poesia ou vice-versa
não dá em nada. Só porque minha profissão é essa? É a mesma coisa que relacionar a poesia de João
Cabral com a diplomacia. Uma é o ganha-pão, a outra é a literatura.
Rubens Rodrigues Torres Filho, paulista de Botucatu e pai de Marcela, 5 anos, Carol, 15, e Joca, 28,
os "três momentos mais felizes" de sua vida, é historiador da filosofia moderna.
- Esse profissional é, basicamente, um leitor que faz análises de textos e procura mostrar linhas de
ligação e identificar o modo como certos problemas surgiram. É difícil sair da caricatura que se
tem de um autor. 0 filósofo Fichte, por exemplo, era um idealista absoluto, mas quando você vai
lá ver o que ele escreveu não é nada disso.
Escritor dirige uma coleção
de ensaios filosóficos
Estudioso e tradutor das obras de Kant, Fichte, Schelling, Nietzsche, Adorno e Benjamin, Rubens
publicou ainda dois livros em prosa: "0 espírito e a letra - A crítica da imaginação pura em
Fichte" (1975) e "Ensaios de filosofia ilustrada" (1987). Também idealizou e dirige, desde 1988,
a coleção "Biblioteca Pólen" da Iluminuras, voltada para a tradução de textos filosóficos de
escrita requintada e tradução precisa. Com site na Internet
a coleção já conta com pelo menos três lançamentos acertados para 1998: "Fragmentos para a
história da filosofia", de Schopenhauer, "Laocoonte", de Lessing, e "Diálogo sobre o homem e
suas relações", do pouco conhecido holandês Franz Hemsterhuis.
Num universo em que trafegam filosofia e poesia, o trapezista Rubens preenche suas pausas de
respiração com o cotidiano e memórias das barricadas da Paris de 68, quando era estudante da
Sorbonne, xícaras de café, a releitura de "0 escorpião encalacrado" de Davi Arrigucci, o jazz
de Miles Davis, uma litogravura de Amilcar de Castro, lembranças dos papos com Mira Schendel
("Ela adorava filosofia"), um risoto de morango no restaurante Mamarana, a "pause cafe"
no La Villete e a paisagem da Praça Vilaboim, endereço do poeta no bairro de Higienópolis.
Apesar de toda a ficção que pauta a poesia de "Novolume", essas referências palpáveis parecem
estar todas lá, reprocessadas pela magia do verso.
(O Globo, 20 de dezembro de 1997)
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A licença poética do filósofo
Yudith Rosenbaum
Aos 45 anos, Rubens Rodrigues Torres Filho lança novo livro e rima poesia com filosofia.
Em meio aos bares da rua Maria Antônia, na efervescência dos anos 60
em São Paulo, um jovem estudante é interpelado na calçada por um ilustre
personagem da intelectualidade paulista: "0 Roberto Schwartz me mostrou
um poema seu. É uma das melhores coisas que eu tenho lido ultimamente em
literatura brasileira." 0 jovem poeta era Rubens Rodrigues Torres Filho,
menino-prodígio da Filosofia da USP no início dos anos 60, e que acaba de
lançar o seu quinto livro de poesias, Poros, pela coleção Claro Enigma
(Ed. Duas Cidades). E o súbito elogio vinha do crivo rigorosíssimo de
Antônio Cândido.
"Fiquei sem fala", relembra esse botucatuense de 45 anos, que deixou as
montanhas para seguir as pegadas do pai e do avô, advogados no interior.
"Vim a São Paulo predestinado a ser um intelectual da elite dominante",
comenta, "e entrei no colégio Mackenzie para depois prestar o vestibular
para Direito na Faculdade do Largo São Francisco." Mas cedo Rubens descobriu
que era mais interessante atravessar a rua e assistir às aulas de Fernando
Henrique Cardoso. "Eu ficava maravilhado com o discurso fluente e
inteligente do Fernando. Eu não entendia uma palavra, mas sentia uma
atração irresistível por aquele desconhecido absoluto." Daí para a
Filosofia foi um passo, prestando o vestibular às escondidas do pai e
entrando em segundo lugar ("tive sorte, sei lá"). Rubens teve de ingressar
também em Direito para cumprir o compromisso familiar: "Mas não tinha a
menor vocação. Direito era um curso muito chato, pura corrida de obstáculos
para chegar ao quinto ano. 0 que ficou do advogado no meu trabalho hoje vem
mais da personalidade forte do meu pai: um discurso argumentativo
consistente, ou seja, 'ganhar no papo'", brinca.
Vivendo uma época de intenso convívio intelectual, Rubens compartilhou da
amizade dos que hoje são estrelas fulgurantes. Como o filósofo Gérard
Lebrun, amigo e o professor que mais o influenciou: "A aula dele era de
uma expressividade enorme. A leitura que ele fazia dos filósofos era sempre
surpreendente, ia além dos manuais." Colega de turma de Marilena Chauí,
atual secretária da Cultura do município de São Paulo, Rubens assistia às
aulas extras que Lebrun dava aos professores Rui Fausto, Bento Prado Jr.,
José Arthur Giannotti, entre outros, interessados por Kant.
0 próprio Giannotti faz questão de falar de seu "talentoso aluno": "É a
pessoa que melhor manuseia a língua portuguesa. Sua poesia é extremamente
refinada e culta, assim como suas análises filosóficas." E acrescenta
enfático: "Ao contrário de tantas pessoas na USP [Rubens é atualmente
professor de História da Filosofia Moderna], ele não tem nenhuma gana
de poder. Ele só quer cuidar do verbo, da letra, dos filhos e dos seus
amores."
A fascinação por Lebrun lhe valeu o interesse pelos idealistas alemães,
tendo traduzido, entre outros, Fichte e Schelling. "Descobri Fichte lendo
a tradução francesa de A destinação do homem e percebi que havia
ali uma alternativa à questão da liberdade em Sartre, justamente via Kant.
Nessa época inventaram o mestrado e acabei me definindo por Fichte." Rubens
não conta, mas o seu ensaio 0 espírito e a letra: a crítica da imaginação pura
em Fichte (Ática, 1975) é um dos raros títulos brasileiros que integram
a bibliografia alemã sobre o tema. Já os Ensaios de filosofia ilustrada
(Brasiliense, 1987), de grande repercussão na época, são referência constante
dos estudos na área.
Pensar o neokantismo tornou-se, a partir daí, a via principal das reflexões
do filósofo Rubens: "Esse espaço entre a crítica da razão e o aparecimento
do hegelianismo é muito rico. É um momento germinal, de abertura para o
pensamento contemporâneo." Essa mesma abertura é marca da pessoa e do poeta,
como afirma o amigo Fernando Paixão, editor da Ática e também poeta, que lançou
recentemente o livro Fogo dos rios, pela Brasiliense: "Rubens explora
as várias relações com a palavra. Uma verdadeira Kama Sutra poética." Para
Paixão, Rubens não faz parte do coro dos contentes nem dos extrovertidos.
"Talvez pertença aos observadores sequiosos, marcados pela 'investigacão do
olhar' " (título do seu primeiro livro de poemas pela Massao Ohno em 1963).
"A poesia começou quando eu sofri o processo de alfabetização", ironiza
Rubens. "Meu pai gostava muito dos parnasianos e reforçava qualquer
brincadeirinha que eu fizesse." Em São Paulo, o interiorano fartou-se com
Drummond, Pessoa, Bandeira e Cummings. "Nessa época, Massao Ohno publicava
os chamados poetas novíssimos, Roberto Piva, Carlos Felipe Moisés e entreguei
a ele meus manuscritos de poesias. Sem que eu soubesse, a poetisa Renata
Palotini recomendou a publicação e aos dezoito anos eu lançava meu primeiro
livro no bar da moda, o João Sebastião Bar. Dos setecentos exemplares, meu
pai comprou um montão e o restante já estava encomendado..."
Amante de cinema sofisticado (no momento, "entusiasmado com a reabertura da
Cinemateca") e de um bom disco de jazz (Miles Davis e Chick Corea), o Rubens
poeta anda desconfiando de sua produção literária: "É que me sinto tão
impregnado de Jorge de Lima a Augusto de Campos, que temo não ter originalidade
nenhuma."
Filósofo por profissão e poeta por diletantismo, Rubens costuma fascinar os
amigos. Por duas vezes surpreendeu a ninguém menos que Michel Foucault.
Quem conta o episódio é o tradutor e ensaísta Paulo César de Souza, amigo íntimo
de Rubens: "Quando Foucault esteve no Brasil, na década de 60, o Rubens
ofereceu-lhe um almoço. Sua cozinheira, na época, era a baiana Alexandrina,
cujo vatapá arrebatou Foucault." Após repetir o prato, o autor de História
da loucura, ante aquela mostra de exuberância, teria exclamado, eufórico:
"Vous êtes un sibarite!" Mas a história não termina aí. Conta César
que quando Rubens morou em Paris fazendo o doutoramento (num studio
em Montparnasse, vizinho de Sartre), encontrou-se de novo com Foucault, que
se rendeu ao intelecto desse tímido paulista. Confessou-se impressionado com
o fato de Rubens transitar nos cumes da filosofia transcendental [Fichte
é considerado um dos filósofos mais difíceis] e que isso "era muito alto
para um filósofo popular" como ele, Foucault... Para Souza, "embora Rubens
tenha a imagem de uma pessoa cerebral, perdido em elucubrações, na verdade é
muito ligado aos prazeres simples da vida".
Essa também é a imagem que a amiga Miriam Chnaiderman, psicanalista e
ensaísta, tem do seu "companheiro de indagações": "Ao lado dos questionamentos
mais elevados, ele busca sempre a simplicidade." Miriam faz questão de
marcar a autenticidade do amigo: "Quando o Rubens deu um jantar para o
Caetano Veloso, os livros ficaram esparramados, e os cinzeiros continuaram
cheios. Eu perguntei se ele não iria arrumar a casa para receber o Caetano.
Ele respondeu: 'E daí que é o Caetano?' 0 Rubens é assim, ele não entra no
imaginário dos grandes mitos. É uma forma muito especial de se situar no
mundo", conclui.
Na verdade, Paulo César revela que Caetano é que é tiete de Rubens: "Ele
tem grande admiração pelo que chama de 'estilo delicado da escrita' do
Rubens." Mas quando perguntam a Rubens se só é possível filosofar em alemão,
a resposta vem pronta: "Não, isso é falso. Em grego tambem dá." Ironia e
humor é o que não faltam na poesia de Rubens: "- Estas plantinhas são mudas?/
- Pelo que me disseram, não./ - E o que foi que elas disseram?" ("Botânica
ao pé da letra", do livro A letra descalça, Brasiliense, 1985).
Embora Rubens seja excessivamente crítico ao falar de sua atividade docente -
"sou muito chato, exijo muita leitura" - essa não é a opinião de Rogério
Costa, orientando de Rubens em sua tese de mestrado sobre Filosofia Medieval:
"Sem ser paternal, ele sabe muito bem propor as questões mais pertinentes ao
meu momento intelectual." E revela um dado folclórico do amigo e orientador:
"Ele não acorda antes do meio dia. E não é porque durma tarde. Diz ele que
gosta mesmo de dormir (à la Descartes, que dormia dezesseis horas
por dia...)."
Excesso mesmo, só no sono. Produz em média seis poemas por ano (marcados
pelo rigor do filósofo e a concisão do essencial) e se diz "totalmente
indisciplinado com a poesia". Autor de poemas como "Niilirismo" (A letra
descalça) ou "Seja breve":
"Isso de ler e escrever
é por amor ao estudo.
Marx e a vida são breves!
Pode-se querer tudo
desde que seja leve."
do livro Poros, Rubens tem o que Giannotti definiu como uma "certa
fragilidade diante da violência do mundo".
Mas ele a enfrenta trabalhando duro. Chamado pela Iluminuras para dirigir
a coleção de filosofia Biblioteca Pólen, Rubens está animadíssimo
com a idéia de levar a filosofia para fora dos muros acadêmicos: "A
filosofia não se faz só dentro de recintos. Desde a Antiguidade, ela existe
em forma de fragmentos, diálogos e correspondências. Vamos publicar Schiller,
Diderot, Friedrich Schlegel e outros."
Já o futuro do poeta é incerto: "Não sei dizer se vou continuar fazendo
poesia. É imprevisível." Talvez fosse melhor terminar com a última estrofe
do poema "Branco", que finaliza o livro A letra descalça.
"Pingaste no papel, ponto final.
A ponta da caneta te esqueceu.
Sinal, deixo-te só
retido na retina de quem leu."
(LEIA, agosto de 1989)
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Intervalo e Enigma
Salete de Almeida Cara
Em Rubens Rodrigues Torres Filho, o enigma do poema permanece suspenso
entre tudo o que vem antes dele e tudo o que ele é.
A poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho assombra pela fecundidade e
radicalidade líricas com que assume a história das formas poéticas e o
"tempo de carência" em que se inscreve. Trabalha com a tradição, a
modernidade e a falha: um poética do eco e do oco - o que, dito assim,
não quer dizer rigorosamente nada, mesmo que se acrescente - "sub specie
ironiae" - ou, ainda, que se matize ironia com aspas, dado que ela nada
tem da profundidade que revela, mas muito do "humour" que sabe não chegar
a lugar nenhum.
Eco e oco podem remeter à correspondência entre fala e falha de uma
certa tradição pós-mallarmaica. Aqui, no entanto, eco e oco remetem
também a um modo de relacionar-se com a série literária (a mais distante
e mais próxima no tempo) e com linguagens não-literárias, num corte que
re-encena o intervalo e a passagem entre "a solidão do ovo /a ponta da
presença" ("Praça", 0 vôo circunflexo, 1981): trata-se de uma
experiência especial dos sentidos ou, metonimicamente, da linguagem.
Um modo possível de ser poeta, hoje, de maneira surpreendentemente
singular.
A desventura e angústia são antigas. 0 caminho de Rubens Rodrigues Torres
Filho, singular e instigante. "A trama - o texto - tecido /na ponta dos
atros dedos /ao fio dos medos ingratos (...)" ("Mas o Cisco", 0 vôo
circunflexo).
Sorriso justo
0 enigma do poeta, sua poesia, desenha-se à maneira do gato de Cheshire,
como está exemplarmente no interrogativo Figura (Figura, 1987), um
espaço intervalar e paradoxal daquilo que se mostra na cara do texto e
se esconde antes da figura-texto, como aponta o dêitico que inicia o poema.
"Já vi muitos gatos sem sorriso. Mas sorriso sem gato!" espantou-se a Alice
de Lewis Carroll:
"Esse sorriso justo, pontuado por vírgulas abstratas,
e no caminho, seguramente em cena, mira
o claro desejo: desmisturar-nos, por qual arte,
em meio a tanto. Mexer com esses relevos
subordinados ao fio da ausência. E o que se supõe
dispõe flores avulsas e laços de linguagem"
0 enigma do poema (da linguagem e do sujeito, aqui lírico), suspenso entre
tudo aquilo que, supostamente, vem antes dele (ou que, nele, se transforma)
e tudo aquilo que ele é (ou que, através dele, nasce), é expressão de uma
carência infinita. Duplos resíduos - olhos, nós, conchas, ocos, palavras,
lapsos e laços de linguagem - geram, sem inocência e de modo "degradado",
o sujeito lírico, numa cena que se desenrola em constante movimento.
0 "fio de voz", "fio de ausência", desenha a mobilidade de imagens,
ritmo e sonoridades (de sentidos), como se a superposição etimológica
de "vago" (vagus) e "vácuo" (vacuus) - "vazio, despejado, exausto" -
pudesse carregar, no movimento, "vacare corpori" ("refazer as forças").
"Antigamente eu acreditava nos direitos /de minha subjetividade soberana.
/Hoje em dia não há mais direitos nem esquerdos: /um fio apenas, sem
espessura, /marca o limite do mundo" ("(Duplo) Resíduo", A letra
descalça, 1985).
"Arte Poética", de 0 vôo circunflexo, fala da poesia como espaço "entre"
(nem um nem outro) "a fala e o desespero", "o gume, o fio e a fala", e
também como "viagem". As idéias de intervalo, suspensão, movimento e
silêncio se superpõem no último poema de A letra descalça: "Este poema
me mandou calar. /Intercalada voz esvaziei. /Era certeira vez uma avestruz
/metida no orifício do talvez". Ou ainda, do mesmo livro: "Por onde se
extravia o pensamento /e se rebusca em vãos e pelas traves, /por lá passam
também aquelas rios /desocupados (passam ao contrário) /e se esvaziam,
ávidos, a vácuo". Pura tautologia interpretativa, quando se sabe que
Poros é o título de seu último livro, ainda não publicado. Pelos poros,
por onde a poesia respira, flui o sentimento do "páthos".
"0 reinado real. Lapsos falhos" ("Pranto Pronto", de Poros) diz, pela
assonância aberta em -a, as idéias de espaço de tempo (contida em "lapso")
e de fenda (que é "falha") traduzindo, numa tomada sonora em primeiro
plano, os "deslizes" evidentes e perceptíveis no modo de configuração
lírica. Aqui e agora, "mexer com esses relevos /subordinados ao fio da
ausência."
Ocorre a imagem de uma estrutura não-regular de elementos vazados. Ocorre
a noção de intervalo como movimento para "integrar" distâncias e diferenças,
assim como de um livro para outro o intervalo, que é de tempo e ângulo de
enfoque, não desfaz o sistema poético equilibrado: um "close" na linguagem,
diríamos de A letra descalça; uma ampliação de limites, diríamos de
Figura e Poros (que teve cinco textos publicados na bela edição de
Figura, com três gravuras de Carlos Clémen, produzidas em processo
serigráfico).
Fluxo verbal
A invenção melopaica explica metaforicamente o processo, por exemplo, na
interrupção do fluxo verbal com uma rima em ausência, e a suspensão de um
lado do parêntese fazendo eco à do substantivo, "Clarão da Rima": "(a
literal a limpa a lisa nua /que no clarão da rima continua /achando modos
novos de luar". Procedimento comentado ainda mais explicitamente no poema
seguinte, retomando a idéia de movimento: "Sabendo de vagar, de estrelas
lisas, /de olhar pelo que falta e de intervalos (...)" ("Nos Tempos
do Verbo Luar", A letra descalça). A invenção imagética, por sua vez,
fala a intermitência dos sentidos, "lapsos falhos", num poema como
"Matissemorfose" onde, diante de um quadro do pintor (uma das variações de
"Natureza Morta com Peixes Vermelhos"), o poeta procura pela designação
final, irremediavelmente mutante, entre nuances de comparações: "(...) Pois
os peixes /são mais peixes do que flores /e o vinho (esplendor! ) é água".
(0 vôo circunflexo).
0 enigma proposto pelo poeta é congenial à sua função de sujeito no poema.
"Nós": pronome pessoal e laços de linguagem. "Nós, achados desatados, /cada
um de nós, cada nó /dá volta à letra, laçada: /e a linha corre melhor"
("Antileitor 3", A letra descalça). E assim como o sujeito, gerado na
dimensão simbólica da linguagem, é linguagem, também o corpo, desenhado
"a fio de faca" em suas "falhas", "perfil ou chaga", "ferida afiada", é
faca ("Perfil", 0 vôo circunflexo). 0 corpo, despedaçado pela experiência
e pelo não-saber (saber), desenha e expressa uma angústia sem volta e sem
fundo.
"0 olho, vidro,
voou em cacos.
0 que resta
deste farol, a órbita vazia
é certa fome irônica
e algum câncer prolífico que a ataca."
("Acidente", 0 vôo circunflexo).
É nesse livro que a imagem do olhar é identificada a "vôo circunflexo"
(e o primeiro livro, de 1963, se chama Investigação do olhar). "0 vôo
circunflexo de uma ave, /ponto de exclamação e convergência /de um olhar
mais que nítido: vazado" ("Circunflexo"). 0 olho-palavra-concha tem seu
perfil (ou "chaga") talhado, a faca, pela repetição dolorosa de ensaiar
sentidos, experimentando significantes. Sua forma curva chega a lembrar a
do feto enrodilhado, impelido a abrir-se "ab ovo", para o "susto de viver".
Mas aqui, sem ilusões, o olhar "nítido" é também "vazado" como o de Édipo,
sabidamente repetido: mesmo disponível para acolher formas e sentidos,
este vôo é vacância e não alcança nenhum "céu estrelado" ("circunflexus",
no entanto, é circunferência do céu). "Teu seio, o fundo de tua vagina,
/regiões aprazíveis onde o musgo /pede licença para espreguiçar-se. Ali
/o desejo quer fazer seu ninho, /como se algum espaço fosse côncavo, como
se /estar /já não fosse ser convexo /e negar pouso a todo & qualquer
cansaço" ("Que Impede o Lado de Dentro?", Poros ).
0 que dá repouso dá também a morte, já que desejo é vida e escrever,
portanto, é fatalidade inexorável: duplicação terrível, regida pelo
"anankê", da experiência primeira da vida e da linguagem, quando já não
há possibilidade de eliminar o "erro" (a culpa de saber?), que "nenhum
/solvente /absolve". Daí esse soluço rítmico-espacial pelos cortes em
versos curtos:
"Errei. Agora
mando meu recado
por vias lácteas
para outras galáxias.
Devora o que foi,
devora, esquecimento
faminto.
Devora em mim
o erro e a mim
com ele se nenhum
solvente
absolve.
Posso nascer inteiro
de nova mãe, inteiro
para afogar o escrito
de volta
no tinteiro.
Mata-borrão é a morte. Dá
algum repouso, duro
que seja. Distam tanto tempo (anos-luz!)
as estrelas."
("0 Céu Estrelado", 0 vôo circunflexo).
Por isso investigar (como fazem o poeta e o leitor
de poesia) anagramaticamente, deixar e recolher vestígios, não é
solucionar. "0 que é vestigio, investe e instiga /ou, se é do olhar,
investiga. /Um ao outro: o olho se olha, /se se recolhe em si, se se
desfolha" (epígrafe de 0 vôo circunflexo).
Nome dos insetos
Com três elementos - trabalho (faber), poeta (persona), texto
("sphynx"), como está em "3 Expoemas" (0 vôo circunflexo), a
configuração lírica superpõe e propõe seus traços mais básicos, segundo
Northrop Frye, numa exponenciação aguda e tensa: o "mélos" (sonoridade e
ritmo: encantamento) e a "Apsis" (desenho verbal e imagens: enigma). Aqui
se conspurca a concepção de artífice puro e se abandona qualquer ilusão
oracular do poeta, vindas de uma certa linhagem da modernidade, com origens
no Simbolismo. No livro de estréia, Investigação do olhar, num poema
mais longo, dividido em seis partes, "Cantigas do Gato, da Corda e da
Candeia", o poeta dizia: "Foram sete as empresas em que ativo /me
aventurei para encontrar a claridade /e foram sete as vezes que meu
corpo /redescoberto foi varado pelo frio", testemunhando os ritos de
iniciação poética. Nessas cantigas o poeta ainda podia afirmar: "Agora
sei o nome dos insetos /e posso revelar-te o amor mais intimo /das
abelhas quando escolhem o seu mel". Mais tarde, em Poros, o que se lê é
"Relance": "(...) e o que se quer, por se querer, não está mais: /por pura
habilidade consumiu-se, /e nosso gesto cerca sua ausência /numa celebração
que tanto a faz".
A ambivalência de "tanto fazer" uma "ausência" incide sobre o modo de ser
"moderno". Dessa forma, o espírito paródico que sustenta sua relação com a
tradição nasce com um sujeito que não tem nenhuma euforia, o que é diferente
da paródia modernista. É como se, aqui, se cantasse num tom menor: no
intervalo, tom a tom, escorre "páthos".
"Por obra e arte
de quem me leia
colho e reparto
a lua cheia. Num almanaque
das coisas tortas
já recolhi
tudo o que importa
e nem coragem
nem esperança
perdem a chance
de entrar na dança.
Ao fim e ao cabo
tudo é demais.
Pouco lhe dá?
Tanto não faz"
("Cantinho do leitor", Poros).
Por que não ver que o espírito paródico ricocheteia até na obra do
próprio poeta quando, por exemplo, ao lado de "Cantinho do Leitor", se
lê "Antileitor"? "Adeus, leitor, me despeço /logo no primeiro verso: /mal
inicio o poema /já não te quero por perto" (A letra descalça).
0 poeta-persona, espírito corrosivo e desalentado, que caminha pela
tradição e pela modernidade destilando seu veneno encontra, para epígrafe
de Poros, uma frase de William Burroughs apud Laurie Anderson: "Language
is a virus from outer space. Listen to my heartbeat". Mas já mostrava seu
tanto de desacato (também um auto-desacato) na antiga referência ao poema,
"Persona": "(...) filho da gruta esse astuto /granito que se esganiça
/o extrato que a boca arranca /sem o metro que a trabalha" ("3 Expoemas",
0 vôo circunflexo).
O que há, agora, é uma espécie de incontida impaciência, às vezes bem
evidente, em textos que já nem cabem em versos (mesmo livres) e explodem
até numa prosa-paródia assumidamente metafórica, como aquele que descreve
"O Lamento da Literatura". "O lamento da literatura em seus gorjeios e
trinados percorrendo a escala das emoções. (...) Tontas cavalgadas por
pradarias absolutamente inconcebíveis - e o real se retira humilhado
perante o referido inatingível esplendor. (...) Certas formas se acentuam,
procuram-se para grifar-se e, ao coincidir consigo mesmas, sucumbem ao
júbilo de se sentir indescritíveis. Prodígios da metamorfose imperceptível!"
("0 Lamento", Poros).
Ótica perversa
Essa é uma encenação, com pompas e circunstâncias, de um possível pequeno
filão da "Grande Bobagem Universal", risco que Roland Barthes percebia
correr sempre. Pequeno filão: o triunfo do "literário" que, jubiloso, se
exibe ou se esconde, às vezes, sob insuspeitas máscaras. Num outro timbre,
ecoa em outros textos do mesmo livro: "Marcar assim /o digno papel, maculá-lo
/com a letra incruenta - eu diria. Estar aqui propriamente e nisto /alagar
o visto. Largueza /de perspectivas amplas (...)" ("Por Escrito"), ou então:
"Não sei até que ponto /a exata recuperação de uma tonalidade /(musical,
emocional) deixa ilesa /aquela singeleza /na qual entretanto nosso primeiro
sentir se comprazia" ("Relance")
É dessa ótica, meio perversa, que o poema retoma e detona a tradição lírica
assentada metricamente - a ingenuidade da redondilha e o decassílabo, metro
de larga importância na poesia de língua portuguesa, sobretudo no Romantismo -
incluindo ainda a dicção árcade e a solenidade parnasiana. Das redondilhas,
que estão em O vôo circunflexo, A letra descalça, Figura e Poros,
irrompem súbitos ritmos não-silábicos, acentuando a dissonância entre tema
e métrica, alargando-a, com mais um intervalo dissonante entre métrica e
ritmo.
"Minha amada me diz: Mete.
Céus! Me sinto um meteoro -
e vou indo, feito um globo,
feito um bobo, uma vedete,
um luminoso sinistro"
("Janelas", A letra descalça).
A redondilha "redondilha" será didática, se não fosse cética:
"Deflorei a margarida
tão pura do meu jardim.
Ela, agora, sem recalques,
é rosa de mil encantos.
Eu sou morcego, sou negro
profeta da perdição.
Ela dança com as folhas
auri-verdes do perdão.
Eu, seu amante e carrasco,
sou alvo de duro asco,
cavalo preto, de casco
cor da lua candidata
ingrata da oposição".
E o decassílabo - com dois versos desgarrados - aparece sob
título evocador das evoluções desinibidas dos pares pelos salões, nos
saraus românticos:
"Nós nos queremos bem: ah que derrama,
que hemorragia de sentimentos!
Irmãos! que almas transparentes temos!
0 chão nos foge sob os pés, tão leve.
Podemos nos olhar pelos avessos
que é tudo luz. 0 bem que nos queremos
nos santifica até aos intestinos.
Que vísceras de vidro! Que evidência!
Meu pênis se eletriza -é um travessão! um hífen
Um traço-de-união entre duas almas
tão juntas, tão aninhadinhas
uma na outra que dá gosto e enlevos"
("Desenvolturas", 0 vôo circunflexo).
Ainda em tom menor, vai até cantigas e recitativos populares, recolhe
cacos da publicidade, faz poemas-flashes homenageando Glória Swanson e um
"Noturno da Rua Marquês de Itu" (A letra descalça). Dito assim pode
parecer excesso, o que é fecundidade e radicalidade líricas, acionada pela
errância da linguagem-corpo-sujeito: "(...) Se desse voz a 'isto' e seu
gemido /pudesse ir achar ninho num ouvido. /A verdadeira noite é tão mais
árdua /do que entreter domésticos fantasmas". Os dois últimos versos
citados pertencem a "Verberações", de 0 vôo circunflexo, os dois
primeiros a "Arabesco", de Figura e Poros.
"É bem mais fácil a vida para quem dessas coisas não cogita" (Jocasta,em Édipo Rei, de Sófocles).
(Folha de S. Paulo, 27 de novembro de 1987)
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