Matérias e Críticas
Intervalo e Enigma
Salete de Almeida Cara
Em Rubens Rodrigues Torres Filho, o enigma do poema permanece suspenso
entre tudo o que vem antes dele e tudo o que ele é.
A poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho assombra pela fecundidade e
radicalidade líricas com que assume a história das formas poéticas e o
"tempo de carência" em que se inscreve. Trabalha com a tradição, a
modernidade e a falha: um poética do eco e do oco - o que, dito assim,
não quer dizer rigorosamente nada, mesmo que se acrescente - "sub specie
ironia" - ou, ainda, que se matize ironia com aspas, dado que ela nada
tem da profundidade que revela, mas muito do "humour" que sabe não chegar
a lugar nenhum.
Eco e oco podem remeter à correspondência entre fala e falha de uma
certa tradição pós-mallarmaica. Aqui, no entanto, eco e oco remetem
também a um modo de relacionar-se com a série literária (a mais distante
e mais próxima no tempo) e com linguagens não-literárias, num corte que
re-encena o intervalo e a passagem entre "a solidao do ovo /a ponta da
presença" ("Praça", "0 Vôo Circunflexo", 1981): trata-se de uma
experiência especial dos sentidos ou, metonimicamente, da linguagem.
Um modo possével de ser poeta, hoje, de maneira surpreendentemente
singular.
A desventura e angústia são antigas. 0 caminho de Rubens Rodrigues Torres
Filho, singular e instigante. "A trama - o texto - tecido /na ponta dos
atros dedos /ao fio dos medos ingratos (...)" ("Mas o Cisco", "0 Vôo
Circunflexo").
Sorriso justo
0 enigma do poeta, sua poesia, desenha-se a maneira do gato de Cheshire,
como está exemplarmente no interrogativo "Figura" ("Figura", 1987), um
espaço intervalar e paradoxal daquilo que se mostra na cara do texto e
se esconde antes da figura-texto, como aponta o dêitico que inicia o poema.
"Já vi muitos gatos sem sorriso. Mas sorriso sem gato!" espantou-se a Alice
de Lewis Carroll:
"Esse sorriso justo, pontuado por vírgulas abstratas, /e no caminho,
seguramente em cena, mira /o claro desejo: desmisturar-nos, por qual
arte, em meio a tanto. Mexer com esses relevos /subordinados ao fio
da ausência. E o que se supõe /dispõe flores avulsas e laços de linguagem"
0 enigma do poema (da linguagem e do sujeito, aqui lírico), suspenso entre
tudo aquilo que, supostamente, vem antes dele (ou que, nele, se transforma)
e tudo aquilo que ele é (ou que, através dele, nasce), é expressão de uma
carência infinita. Duplos resíduos - olhos, nós, conchas, ocos, palavras,
lapsos e laços de linguagem - geram, sem inocência e de modo "degradado"
o sujeito lírico, numa cena que se desenrola em constante movimento.
0 "fio de voz", "fio de ausência", desenha a mobilidade de imagens,
ritmo e sonoridades (de sentidos), como se a superposição etimológica
de "vago" (vagus) e "vácuo" (vaccuus) - "vazio, despejado, exausto" -
pudesse carregar, no movimento, "vacare corpori" ("refazer as forqas").
"Antigamente eu acreditava nos direitos /de minha subjetividade soberana.
/Hoje em dia não há mais direitos nem esquerdos: /um fio apenas, sem
espessura, /marca o limite do mundo" ("(Duplo) Resíduo", "A Letra
Descalça", 1985).
"Arte Poética", de "0 Vôo Circunflexo", fala da poesia como espaço "entre"
(nem um nem outro) "a fala e o desespero", "o gume, o fio e a fala", e
também como "viagem". As idéias de intervalo, suspensão, movimento e
silencio se superpõem no último poema de "A Letra Descalça": "Este poema
me mandou calar. /Intercalada voz esvaziei. /Era certeira vez uma avestruz
/metida no orifício do talvez". Ou ainda, do mesmo livro: "Por onde se
extravia o pensamento /e se rebusca em vãos e pelas traves, /por lá passam
também aquelas rios /desocupados (passam ao contrário) /e se esvaziam,
ávidos, a vácuo". Pura tautologia interpretativa, quando se sabe que
"Poros" é o título de seu último livro, ainda não publicado. Pelos poros,
por onde a poesia respira, flui o sentimento do "páthos".
"0 reinado real. Lapsos falhos" ("Pranto Pronto", de "Poros") diz, pela
assonância aberta em -a, as idéias de espaço de tempo (contida em "lapso")
e de fenda (que é "falha") traduzindo, numa tomada sonora em primeiro
plano, os "deslizes" evidentes e perceptíveis no modo de configuração
lírica. Aqui e agora, "mexer com esses relevos /subordinados ao fio da
ausência."
Ocorre a imagem de uma estrutura não-regular de elementos vazados. Ocorre
a noção de intervalo como movimento para "integrar" distâncias e diferenças,
assim como de um livro para outro o intervalo, que é de tempo e ângulo de
enfoque, não desfaz o sistema poético equilibrado: um "close" na linguagem,
diríamos de "A Letra Descalça"; uma ampliação de limites, diríamos de
"Figura" e "Poros" (que teve cinco textos publicados na bela edição de
"Figura", com três gravuras de Carlos Clémen, produzidas em processo
serigráfico).
Fluxo verbal
A invenção melopaica explica metaforicamente o processo, por exemplo, na
interrupção do fluxo verbal com uma rima em ausência, e a suspensão de um
lado do parêntese fazendo eco à do substantivo, "Clarão da Rima": "(a
literal a limpa a lisa nua /que no clarão da rima continua /achando modos
novos de luar". Procedimento comentado ainda mais explicitamente no poema
seguinte, retomando a idéia de movimento: "Sabendo de vagar, de estrelas
lisas, /de olhar pelo que falta e de intervalos (...)" ("Nos Tempos
do Verbo Luar", "A Letra Descalça"). A invenção imagética, por sua vez,
fala a intermitência dos sentidos, "lapsos falhos", num poema como
"Matissemorfose" onde, diante de um quadro do pintor (uma das variações de
"Natureza Morta com Peixes Vermelhos"), o poeta procura pela designação
final, irremediavelmente mutante, entre nuances de comparações: "(...) Pois
os peixes /são mais peixes do que flores /e o vinho (esplendor! ) é água".
("0 Vôo Circunflexo").
0 enigma proposto pelo poeta é congenial à sua função de sujeito no poema.
"Nós": pronome pessoal e laços de linguagem. "Nós, achados desatados, /cada
um de nós, cada nó /dá volta à letra, lagada: /e a linha corre melhor"
("Antileitor 3", "A Letra Descalça"). E assim como o sujeito, gerado na
dimensão simbólica da linguagem, é linguagem, também o corpo, desenhado
"a fio de faca" em suas "falhas", "perfil ou chaga", "ferida afiada", é
faca ("Perfil", "0 Vôo Circunflexo"). 0 corpo, despedaçado pela experiência
e pelo não-saber (saber), desenha e expressa uma angústia sem volta e sem
fundo. "0 olho, vidro, /voou em cacos. /0 que resta /deste farol, a órbita
vazia /é certa fome irônica /e algum câncer prolífico que a ataca."
("Acidente", "0 Vôo Circunflexo").
É nesse livro que a imagem do olhar é identificada a "vôo circunflexo"
(e o primeiro livro, de 1963, se chama "A Investigação do Olhar"). "0 vôo
circunflexo de uma ave, /ponto de exclamação e convergência /de um olhar
mais que nítido: vazado" ("Circunflexo"). 0 olho-palavra-concha tem seu
perfil (ou "chaga") talnado, a faca, pela repetição dolorosa de ensaiar
sentidos, experimentando significantes. Sua forma curva chega a lembrar a
do feto enrodilhado, impelido a abrir-se "ab ovo", para o "susto de viver".
Mas aqui, sem ilusões, o olhar "nítido" é também "vazado" como o de Édipo,
sabidamente repetido: mesmo disponível para acolher formas e sentidos,
este vôo é vacância e não alcança nenhum "céu estrelado" ("circunflexus",
no entanto, é circunferência do céu). "Teu seio, o fundo de tua vagina,
/regiões aprazíveis onde o musgo /pede licença para espreguiçar-se. Ali
/o desejo quer fazer seu ninho, /como se algum espaço fosse côncavo, como
se /estar /já não fosse ser convexo /e negar pouco a todo & qualquer
cansaço" ("Que Impede o Lado de Dentro?", "Poros" ).
0 que dá repouso dá também a morte, já que desejo é vida e escrever,
portanto, é fatalidade inexorável: duplicação terrível, regida pelo
"anankê", da experiência primeira da vida e da linguagem, quando já não
há possibilidade de eliminar o "erro" (a culpa de saber?), que "nenhum
/solvente /absolve". Daí esse soluço rítmico-espacial pelos cortes em
versos curtos: "Errei. Agora /mando meu recado /por vias lácteas /para
outras galáxias. /Devora o que foi, /devora, esquecimento /faminto.
/Devora em mim /o erro e a mim /com ele se nenhum /solvente /absolve.
/Posso nascer inteiro /de nova mãe, inteiro /para afogar o escrito /de
volta /no tinteiro. /Mata-borrao é a morte. Dá /algum repouso, duro /que
seja. Distam tanto tempo (anos-luz!) /as estrelas." ("0 Céu Estrelado",
"0 Vôo Circunflexo"). Por isso investigar (como fazem o poeta e o leitor
de poesia) anagramaticamente, deixar e recolher vestígios, não é
solucionar. "0 que é vestigio, investe e instiga /ou, se é do olhar,
investiga. /Um ao outro: o olho se olha, /se se recolhe em si, se se
desfolha" (epégrafe de "0 Vôo Circunflexo").
Nome dos insetos
Com três elementos - trabalho (faber), poeta (persona), texto
("sphynx"), como está em "3 Expoemas" ("0 Vôo Circunflexo"), a
configuração lírica superpõe e propõe seus traços mais básicos, segundo
Northrop Vrye, numa exponenciação aguda e tensa: o "mélos" (sonoridade e
ritmo: encantamento) e a "Apsis" (desenho verbal e imagens: enigma). Aqui
se conspurca a concepção de artífice puro e se abandona qualquer ilusão
oracular do poeta, vindas de uma certa linhagem da modernidade, com origens
no Simbolismo. No livro de estréia, "A Investigação do Olha", num poema
mais longo, dividido em seis partes, "Cantigas do Gato, da Corda e da
Candeia", o poeta dizia: "Foram sete as empresas em que ativo /me
venturei para encontrar a claridade /e foram sete as vezes que meu
corpo /redescoberto foi varado pelo frio", testemunhando os ritos de
iniciação poética. Nessas cantigas o poeta ainda podia afirmar: "Agora
sei o nome dos insetos /e posso revelar-te o amor mais intimo /das
abelhas quando escolhem o seu mel". Mais tarde, em "Poros", o que se lê é
"Relance": "(...) e o que se quer, por se querer, não está mais: /por pura
habilidade consumiu-se, /e nosso gesto cerca sua ausência /numa celebração
que tanta a faz".
A ambivalência de "tanto fazer" uma "ausência" incide sobre o modo de ser
"moderno". Dessa forma, o espírito paródico que sustenta sua relação com a
tradição nasce com um sujeito que não tem nenhuma euforia, o que é diferente
da paródia modernista. É como se aqui, se cantasse num tom menor: no
intervalo, tom a tom, escorre "páthos". "Por obra e arte /de quem me leia
/colho e reparto /a lua cheia. Num almanaque /das coisas tortas /já recolhi
/tudo o que importa /e nem coragem /nem esperança /perdem a chance /de
entrar na dança. /Ao fim e ao cabo /tudo é demais. /Pouco lhe dá? /Tanto
não faz" ("Cantinho do leitor", "Poros").
Por que não ver que o espírito paródico ricocheteia até na obra do
próprio poeta quando, por exemplo ao lado de "Cantinho do Leftor", se
lê "Antileitor"? "Adeus, leitor, me despeqo /logo no primeiro verso: /mal
inicio o poema /já não te quero por perto" ("A Letra Descalça").
0 poeta-persona, espírito corrosivo e desalentado, que caminha pela
tradição e pela modernidade destilando seu veneno encontra, para epígrafe
de "Poros", uma frase de William Burroughs apud Laurie Anderson: "language
is a virus from outer space. Listen to my heartbeat". Mas já mostrava seu
tanto de desacato (também um auto-desacato) na antiga referência ao poema,
"Persona": "(...) filho da gruta esse astuto /granito que se esganiça
/o extrato que a boca arranca /sem o metro que a trabalha" ("3 Expoemas",
"0 Vôo Circunflexo").
O que há, agora, é uma espécia de incontida impaciência, às vezes bem
evidente, em textos que já nem cabem em versos (mesmo livres) e explodem
até numa prosa-paródia assumidamente metafórica, como aquele que descreve
"O Lamento da Literatura". "O lamento da literatura em seus gorjeios e
trinados percorrendo a escala das emoções. (...) Tontas cavalgadas por
pradarias absolutamente inconcebíveis - e o real se retira humilhado
perante o referido instingível esplendor. (...) Certas formas se acentuam,
procuram-se para grifar-se e, ao coincidir consigo mesmas, sucumbem ao
júbilo de se sentir indescritíveis. Prodígios da metamorfose imperceptível!"
("0 Lamento", "Poros").
Ótica perversa
Essa é uma encenação, com pompas e circunstâncias, de um possível pequeno
filão da "Grande Bobagem Universal", risco que Roland Barthes percebia
correr sempre. Pequeno filão: o triunfo do "literário" que, jubiloso, se
exibe ou se esconde, às vezes, sob insuspeitas máscaras. Num outro timbre,
ecoa em outros textos do mesmo livro: "Marcar assim /o digno papel, maculá-lo
/com a letra incruenta - eu diria. Estar aqui propriamente e nisto /alargar
o visto. Largueza /de perspec- tivas amplas (...)" ("Por Escrito"), ou então:
"Nao sei até que ponto /a exata recuperação de uma tonalidade /(musical,
emocional) deixa ilesa /aquela singeleza /na qual entretanto nosso primeiro
sentir se comprazia" ("Relance")
É dessa ótica, meio perversa, que o poema retoma e detona a tradição lírica
assentada metricamente - a ingenuidade da redondilha e o decassílabo, metro
de larga importância na poesia de língua portuguesa, sobretudo no Romantismo -
incluindo ainda a dicção árcade e a solenidade parnasiana. Das redondilhas,
que estao em "O Vôo Circunflexo", "A Letra Descalça", "Figura" e "Poros",
irrompem súbitos ritmos não-silábicos, acentuando a dissonância entre tema
e métrica, alargando-a, com mais um intervalo dissonante entre métrica e
ritmo. "Minha amada me diz: Mete. /Céus! Me sinto um meteoro - /e vou indo,
feitn um globo, /feito um bobo, uma vedete, /um luminoso sinistro"
("Janelas", "A letra Descalça").
A redondilha "redondilha" será didática, se não fosse ética: "Deflorei a
margarida /tão pura do meu jardim. /Ela, agora, sem recalques, /é rosa de
mil encantos. /Eu sou morcego, sou negro /profeta da perdição. /Ela dança
com as folhas /auri-verdes do perdão. /Eu, seu amante e carrasco, /sou alvo
de duro asco, /cavalo preto, de casco /cor da lua candidata /ingrata da
oposição". E o decassílabo - com dois versos desgarrados - aparece sob
título evocador das evoluções desinibidas dos pares pelos salões, nos
saraus românticos: "Nós nos queremos bem: ah que derrama, /que hemorragia
de sentimentos! /Irmãos! que almas transparentes temos! /0 chão nos foge
sob os pés, tão leve. /Podemos nos olhar pelos avessos /que é tudo luz.
0 bem que nos queremos /nos santifica até aos intestinos. /Que vísceras
de vidro! Que evidência! Meu pênis se eletriza -é um travessão! um hífen
/Um traço-de-união entre duas almas /tão juntas, tão aninhadinhas /uma na
outra que dá gosto e enlevos" ("Desenvolturas", "0 Vôo Circunflexo").
Ainda em tom menor, vai até cantigas e recitativos populares, recolhe
cacos da publicidade, faz poemas-flashes homenageando Glória Swanson e um
"Noturno da Rua Marquês de Itu" ("A Letra Descalça"). Dito assim pode
parecer excesso, o que fecundidade e radicalidade líricas, acionada pela
errância da linguagem-corpo-sujeito: "(...) Se desse voz a 'isto' e seu
gemido /pudesse ir achar ninlio num ouvido. /A verdadeira noite é tão mais
árdua /do que entreter domésticos fantasmas". Os dois últimos versos
citados pertencem a "Verberações", de "0 Vôo Circunflexo", os dois
primeiros a "Arabesco", de "Figura" e "Poros".
"É bem mais fácil a vida para quem dessas coisas não cogita" (Jocasta,
em "Édipo Rei", de Sófocles).
(Folha de S. Paulo, 27 de novembro de 1987)
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