Matérias e Críticas
POROS
Entrevista
Há muitos pontos de contato entre dois professores de
filosofia. José Américo Motta Pessanha foi o idealizador
da coleção "Os Pensadores". Só esta contribuição lhe
garantiria lugar certo entre os intelectuais do país.
Trabalha atualmente no goveno municipal; é o diretor do
Centro Cultural São Paulo. 0 poeta Rubens Rodrigues Torres
Filho é um especialista em filosofia alemã: Fichte, Kant,
Schelling. 0 que segue é uma conversa entre os dois sobre
a poesia.
Pessanha - Para você, filosofia e poesia se complementam
como o dia e a noite, como animus/anima, como atividades
alternantes de um Rubens diurno (que trabalha com conceitos) e
um Rubens noturno (que joga com imagens), como diria Bachelard?
Torres F° - Já aprendemos que, quando um filósofo indaga,
não faz uma pergunta comum, simples manifestação de um não saber
(Por que avião voa? Por que prego afunda?). A pergunta filosófica
é sempre produtiva. Ao questionar, já está criando ou, no mínimo,
aperfeiçoando os problemas. Por isso não lamento tanto - mas lamento sim! -
que você não tenha podido escrever um artigo sobre o meu livro.
Aquela leitura redonda, penetrante, que certamente voce já tem
engatilhada - e que nos encantaria -, já está presente aqui,
alimentando suas interrogações. Respondo, então, que compartilho
de sua curiosidade por esses jogos entre a filosofia e a poesia,
entre o diurno e o noturno. Tanto que andei mexendo com Novalis e
me demorei na tradução do "Pólen". Esse poeta, tão impregnado de
filosofia, ao tentar conquistar uma abertura para "o outro lado",
inaugurou nos seus "Hinos à Noite" uma tradição que se mantém até
hoje. Uma atenção voltada para esse lado obscuro que contrabalança
o amor pela luz, inerente a todo "vivente, dotado de sentido". Mas
para acender ainda, nessa obscuridade, a flama de uma candeia, darei
também a você o texto integral do poema, cujos dois primeiros versos
citei na epígrafe do "Poema sem Nome". Chama-se "Poema Oculto", é de
Pedro Morato Krahenbühl e foi publicado na revista Almanaque, n°7:
"Vê que teu verso não ande aceso
onde anda a noite.
Não lhes dispenses a noturnidade.
Põe nas vigílias em que demoras
as nebulosas do pensamento.
Falso episódio,
seja teu sorriso mancha tênue,
mas perceptível na face das coisas.
Guarda-te,
armeiro próprio,
forjando palavras que te livrem,
quando o sonho vier disputar,
à tua vontade, tuas mãos."
Pessanha - No belíssimo "O Lamento", você diz que "o real se
retira humilhado perante o inatingível esplendor" do "absurdo sentido
entre imagens soltas e acabadas". Seria isso a vitória da categoria de
irreal - imprescindível aos imaginários jogos poéticos (outra vez Bachelard!)
sobre a reincidente pretensão de certos filósofos, de desvelar com
palavras (mesmo depois de Kant!) o chamado real, o em-si inexpugnável?
Torres F° - Esse poema, "0 Lamento", foi um dos primeiros desses
exercícios arriscados que na época eu gostava de chamar de "prosas porosas".
Sem a divisão convencional de linhas, tentando imitar a musicalidade da
prosa e reservando o efeito poético para as imagens-surpresa e o barroquismo
fônico. Uma espécie de prosa respirada, transpirada. Mas não quis com isso
inverter a hierarquia entre o real e o irreal: teria preferido, na medida
do possível, dissolvê-1a. Como? No "júbilo", por assim dizer, de formas que
"coincidissem consigo mesmas" e assim recuperassem, no instante miraculoso
dessa "metamorfose imperceptível", o esplendor perdido da identidade.
Tema obsessivo meu, percebo agora. Pois não é que ele está presente,
inteiro, num poema de 0 vôo circunflexo, chamado "Matissemorfose":
"Eis o vaso.
No interior do qual
giram três peixes.
Ao redor de quem
cintila o vinho.
Presente, em vidro, o
vaso, mais aquário
do que vaso, menos taça
do que o
vinho.
Pois os peixes
são mais peixes do que flores
e o vinho (esplendor!) é água."
Pessanha - Cá entre nós (título de um poema seu), o humor fino e
sutil que perpassa seus escritos, não só os poéticos, é artimanha de tímido
que fica às vezes "gago, embaraçado", ou é antes o sorriso da razão, que
aparece sempre nos retratos de Voltaire?
Torres F° - Enfim, uma pergunta fácil. É a alternativa "A". Espécie
de "modéstia de gala" ("Psiconáutica"). Nada a ver com o sorriso de Voltaire.
Pessanha - É que sou tentado, diante de alguns poemas seus, a anotar:
"ensaios de poesia ilustrada". Você concordaria?
Torres F° - Não sei. A essa pergunta não tenho segurança para
responder. 0 caso é que nos meus livros de ensaios (0 espírito e a
letra, "Filosofia Ilustrada") estou falando sobre coisas que li.
Sobre o que leio eu sei falar, o que eu leio eu domino, eu aprendo.
Sobre o que eu escrevo, se não me engano, quem vai ler é que vai saber
falar. Há um texto de Novalis onde ele declara que o leitor é um autor
mais poderoso, o autor elevado à segunda potência. A tal ponto que
é desaconselhado a um autor até mesmo o uso de grifo, caixa-alta,
parêntese, nota de rodapé - que já são atribuições do leitor, funções que
o escritor estaria usurpando. Que um autor venha a se tornar seu próprio
leitor, o que em si é perfeitamente possível, já seria outro caso,
completamente diferente. Certo é que, nesse caso, ele já não o seria na
qualidade de autor.
Pessanha - Além do humor e da finura, a leveza é outra marca de seus
escritos. Afinal, "Marx e a vida são breves!" ("Seja Breve"). Assim, sem
querer ser como "os pedantes de antes" ("Página"), pergunto: o que faz
seus poemas por vezes esvoaçar, lepidópteros ("Vinheta"), não é a tensão
entre a letra e o espírito a detonar "palavras-nervos" contra "signos-fivela"
("Estrofe"), a criar borboletras ("E de Resto, Glaura? Tem ido ao
Cinema?")?
Torres F° - Aí está. Essa pergunta sua já contém por si mesma uma lição
completa. As relações que você aponta são novas para mim, são uma descoberta
sua. Pergunta se tenho a mesma impressão? Agora, depois que você chamou a
atenção para isso, essa visão dos poemas parece irresistível. Se tive essa
intenção? Mas como poderia, se você acaba de me abrir os olhos para a
possibilidade dessa leitura?
Pessanha - Sem querer reproduzir a deliciosa caricatura do intelectual
que você descreve na nota do poema "De Interpretatione" (nem uspiano sou!),
ouso indagar: o sentido de sua poética não é tambén o de servir de antídoto
para os exageros filosofantes da busca do próprio sentido, colocando em seu
lugar a "filigrana grave" ("Arabesco") do poema, o jogo-sério (plagio Platão)
de uma linguagem que, assim, exorciza sua hybris, sua desmesurada
pretensão de atingir - dizendo absolutos, esquecida de sua porosa e lúdica
construção?
Torres F° - Antídoto, não. Senão seria a minha vez de imitar Platão,
lembrando a definição da escrita como phármakon, remédio e veneno ao
mesmo tempo. Mas, de qualquer modo, há a tentativa de produção de leveza,
de que você falou antes. Tenho notado muito, amigo José Américo, até mesmo
dentro da USP, um fenômeno preocupante. Até mesmo entre gente dedicada ao
ler e ao escrever há uma determinada falta de amor pelo estudo, que faz
tudo já estar resolvido por antecipação, no instante em que você decidiu
"de que lado está". A pesquisa, então, acaba se convertendo em mera
formalidade ou obrigação, pois não é dela que virão os resultados, as
respostas. Basta estar do lado bom, do lado certo, e defendê-lo. Do lado
errado, você está perdido. Diferente do dogmatismo clássico (que simplesmente
acreditava na possibilidade de conhecermos as coisas em si), parece ser
esta agora, depois de Kant, a forma assumida pelo "esprit de pesanteur"
(diagnosticado por Nietzsche). No entanto a operação filosófica essencial,
que os clássicos chamavam de "suspensão do julgamento", é indissociável da
imagem da leveza, não é mesmo? Mas, caluda! Senão acabaremos nós dois, por
força da deformação profissional, transformando esse despretensioso livrinho
de poemas num tratado de filosofia transcendental.
(Folha de S. Paulo, 12 de agosto de 1989)
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NEI DUCLÓS
E para Rubens Rodrigues Torres Filho, que enche sua poesia de tambores,
o resultado só pode ser este: "Cai o poema, filigrana grave, precipitado
na página alvura". A gravidade do trabalho poético ganha uma dimensão
própria no Brasil, onde destruir a linguagem passa por dois corredores:
o excesso de oferta do discurso - obsessivo e redundante - e o deboche
em relação ao poema. Na terra do repente e do improviso, dos poetas
incuravelmente românticos, do vazio sinfônico do niilismo temperado pelo
talento, sobra espaço para a construção de pequenas pontes, da invenção de
espelhos ao longo da estrada - para que o discurso se parta diante da
própria imagem -, da convivência com a armadura da linguagcm - carne
difícil em meio ao mar de falsidades.
(O Estado de S. Paulo, 29 de junho de 1989)
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JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES
Já o diálogo de Rubens Rodrigues Torres Filho segue outra tática. Em um
livro anterior, A letra descalça (1985), o primeiro poema se
intitula Antileitor e diz em sua primeira estrofe: "Adeus, leitor,
me despeço/ logo no primeiro verso:/ mal inicio o poema/ já não te quero
por perto". A esse descarte da comunhão poética com o semelhante hipócrita,
soma-se a estrofe final (em que o jogo de palavras com o pronome indicia
os intricamentos das identidades): "Nós, achados desatados/ cada um de
nós, cada nó/ dá volta à letra, laçada:/ e a linha corre melhor". Na
verdade, nada de efusivo fluxo poético, mas uma sucessão de desvios e
tropeços na matéria mesma da poesia. Em Poros certamente persiste a atitude
do autor (mesmo que não se goste de um ou outro neologismo, de uma ou outra
imagem fácil). Compõem o livro poemas sobre a criação literária, poemas
sobre o amor, poemas sobre o desejo físico - poemas todos em que, acima de
tudo, esses temas se desenham por um curso que se expõe e que não apenas dá
a ver. Como exemplo, tem-se a discreta sucessão de assonâncias nos versos
iniciais de um belo poema como Selos: "Antes de poder querer pousar/
as mãos, selos precários, sobre a pele/ difícil desta tarde". A sucessão
desses recursos não é mero ornato, mas processo para o "curto-circuito da
frase, num reativar de molas instantâneas". Molas que precipitam os poemas
com "palavras-nervos", "signos-fivelas" e "lacos de linguagem", que
arremessam os poemas para diante de "um saber quase pânico", de "cabelos a
esmo de si" ou de uma "reviravolta de dados para enfeitiçar o acaso". 0
espanto do real irrompe por dentro do espanto da linguagem, num processo
como o destes versos: "Giras em torno das voltas/ que te giram em torno".
Processo ativado pela ironia que marca cada passo e contrapasso do texto -
presente, mais do que nas "1ágrimas da gramática", sobretudo na matéria mesma
com que se marca o papel, "etiquetas porém senão letras". Pequenas cenas,
pequenos incidentes, pequenas prosas com fantasias líricas rasuram um
horizonte de fácil identificação. 0 jogo é sempre rápido e de súbito se
está seja perante a vertigem do real com "meninos de mentira à beira-nada",
seja perante a marcha dissonante do "Ocioso exercício/ de exercitar exércitos
de moscas". Em frequentes armações de sua sintaxe, os poemas revitalizam,
fazem e desfazem os nós entre linguagem e realidade, entre lirismo e
lugar-comum, entre fluência e estranheza. A dicção coloquial dos poemas de
Poros traz para sua elaboração - está longe dos meros achados
circunstanciais dos anos setenta - a consciência de que é necessário
construir com rigor seu à-vontade. E se o "banal espreita", espreita
também um antileitor. 0 diálogo que aí se arma é sem dúvida bem sedutor.
(Jornal do Brasil, 5 de agosto de 1989)
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