Matérias e Críticas
RETROVAR
DAVI ARRIGUCCI JR.
Sem se filiar à poesia marginal dos anos sessenta, como os poetas daquele
tempo tem o gosto da sacada súbita - instantâneo recortado do cotidiano -
e o vivo senso de humor, de herança modernista já muito mediada, mas
combinado a uma vertente culta, com preocupação reflexiva e um cuidado de
forma que o afastam do espírito daqueles anos em que começou a escrever,
como jovem poeta universitário. Era o tempo de Investigação do olhar
(1962).
No fundo, se vincula à linhagem dos poetas doutos, modernos e críticos,
já sem filiação definida, mas com certeza um autor para quem pesa a muita
leitura e o saber universitário.
Dublê de filósofo e de tradutor, ao jogar com as palavras recifra
o vivido em outra chave: enigma verbal em que se condensa, com agudeza, o
fluxo das emoções e um pensamento vigilante, afeito à ironia. É poesia
paradoxal que deriva de uma percepção lingüística, mas brota antes do
encontro de um ser sensível com o mundo, visto por ângulos desencontrados
da contradição e do desconcerto.
Todas as sutis modificações linguísticas que funcionam para ele como
molas instantâneas do sentido - trocadilhos, paradoxos, anacolutos,
paronomásias, rimas, assonâncias, aliterações, toda a parafernália verbal
que materializa a imagem - constituem, portanto, seu campo de jogo.
É um campo literal de brincadeiras verbais, em que se diverte com a amada,
advertindo-a de que está falando sério: arte lúdica e erótica na essência.
(O Estado de S. Paulo, 30 de outubro de 1993)
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CARLOS FELIPE MOISÉS
À medida que os anos passam e a experiência intelectual se adensa,
mais Rubens Rodrigues Torres Filho parece assenhorar-se daquele
ideal poético posto a circular por Alberto Caeiro: "Sei ter o pasmo
essencial que uma criança teria se, ao nascer, reparasse que nascera
deveras."
O leitor se surpreende com o pasmo, isto é, com a impressão de
frescor e descoberta, e passa ao largo do fato capital: o que o
poema registra não é a descoberta em si, mas o desenho da
consciência atenta, que "repara" (e como repara!) no frescor do
que está descobrindo. Está? Estava, esteve... Descobriu, pronto,
deixou de ser. E por isso precisa ser retrovado, através das
palavras: "Só porque digo em poesia/ é exagero? Não é não."
0 tempo, a memória, a fugacidade da experiência, a vida que
escoa, e se não escoa degenera: eis a matéria (velha? nova?)
com que lida a poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho. Sutil,
velada, às vezes hermética, é uma poesia à procura da coisa, mas
que sabe, sem disfarce, que não pode fixar senão o nome da coisa.
Daí o requinte artesanal com que o poeta manipula as palavras,
alternando aspereza e suavidade, lirismo enternecido e súbita
exasperação - jogos verbais, trocadilhos, alusões -, o
deslumbramento contido diante de quase nada, isso: a vida vivida.
E fingindo apenas brincar com as palavras, sem preconceitos e sem
compromissos, salvo este: comover-se e comover, discretamente.
(Folha de S. Paulo, 9 de janeiro de 1994)
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