Matérias e Críticas
NOVOLUME
Caríssimo Rubens
Alberto Pucheu
Rio, 22 de novembro de l997
Caríssimo Rubens,
Agora, sim, já posso lhe dar os parabéns com conhecimento de causa!
Comprei Novolume, caprichosíssimo em todos os aspectos. A capa do Waltercio,
sem ser figurativa, consegue, além de belíssima, dizer o que o título diz. O
ovo, em áspero contraste com a pequena pedra e com o fundo rochoso,
o novo deflagrado, além de pelo próprio ovo, pelo pano recém-aberto,
o lume presente no contraste da luz do ovo com o escuro da pedra e
do fundo rochoso. Escuto até o alto volume do silêncio de tudo que,
na capa, no título, quer se manter enigmático.
É este enigmático que encontro também no interior do livro, e que
muito me apraz. Uma poesia que, em vários momentos, quer encobrir mais do
que mostrar; a começar pelos primeiros versos do livro, a completamente
inesperada paisagem lunar em noite de Terra cheia. Lindo, única a
inversão! A arguta e delicada presença do pensamento, via Nietzsche e os
gregos, como em no princípio e em após o sinal do bip! A
sutil ironia aliada ao sutil sentimento como em curriculum! A
presença constante da polissemia, como a liquidação em no
princípio. Este mesmo poema traz outras características sempre suas,
além da anterior, como a perversão do ditado popular(coisa e Tales, a
primeira imprecisão é a que fica?), como o desnovelar das palavras que
vão gerando outras a partir de si mesmas(meditações mediterrâneas,
hidráulica arcaica). As aliterações, como em ou seja. Isto, sem
falar em todas as outras páginas do livro, trazendo uma poesia rigorosa e coesa.
Gostaria de lhe dizer que o livro está sendo bem distribuído por
aqui. De umas seis livrarias por que passei, eu o vi em umas quatro. Tem na
Dazibao, tem na da Travessa, no Espaço Unibanco, na Timbre. Só não pude ver
ainda seu site.
Ficam aqui o meu abraço e meus parabéns.
Com a amizade,
Alberto.
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Paisagens anteriormente anônimas
Arthur Nestrovski
Por onde se extravia o pensamento? É uma pergunta que o próprio poeta se faz, num dos poemas de
"A Letra Descalça" (1985). E ele mesmo responde, à sua maneira, num daqueles pontos característicos
onde pensamento e linguagem se confundem e os versos se voltam sobre si: "A linguagem quer retrançar
no avesso a sua trama". No livro seguinte, "Poros" (1989), a resposta seria virtualmente oposta:
"0 lamento da literatura em seus gorjeios e trinados... é um vento aventureiro desfazendo tranças".
Mas "trança rimas sempre - o poeta", como escreveu Nietzsche, com ironia, num poema traduzido
por Rubens Rodrigues Torres Filho dez anos antes de "A Letra Descalça" e dez anos depois de seu
primeiro livro ("Investigação do Olhar").
Essa e outras tranças podem ser acompanhadas de perto, agora, num único volume ("Novolume"),
reunindo os 5 previamente publicados, mais 12 poemas novos (1994-97), alguns avulsos e inéditos,
e 11 traduções exemplares. A tentação de ler cada livro à luz dos outros é natutal numa coletânea
dessas; a cronologia não é uma lei da poesia, mas ninguém escapa do sentido de narrativa pessoal
criado pela simples ordem de um livro atrás do outro. Não é menos natural se fixar em contradições
como a do parágrafo acima. Mas nesse caso, ao menos, as contradições fazem parte de uma lógica
particular, que não se altera fundamentalmente ao longo de 34 anos de poesia e que vem nutrindo,
esse tempo todo, as mutações e renovações de um dos maiores poetas brasileiros da atualidade.
As metáforas mudam, mas não há um comentador que não se aproxime desse núcleo secreto, ou nem
tão secreto da poesia: para José Paulo Paes, é um jogo entre "face oculta" e "face visível"; para
Júlio Castañon Guimarães, são os "nós entre linguagem e realidade" que os poemas estão sempre
fazendo e desfazendo; Aguinaldo José Gonçalves, na orelha do "Novolume", fala da consciência do
pensamento pela imagem; e Fernando Paixão, em seu ensaio introdutório, descreve uma entrega ao
pensamento, como "maneira voluntária para se pôr rente 'ao rio das coisas'".
Ninguém deixa de ler, então, essa poesia do pensamento de Rubens Rodrigues Torres Filho (o que é
quase previsível, quando se pensa em sua carreira de professor, historiador, tradutor e editor de
filoso8a). Menos frequente é a percepção de que este é um problema e não uma solução, para um poeta
que ouve, ou quer ouvir "bater a pálpebra do instante", que tem a ambição de estar presente "nos
sulcos do acontecido/ no giro do acontecer" e que tem a coragem de escrever "aqui é sempre este
agora", num poema ("0 Dia É Mais?", inédito de 1961) que põe em xeque cada uma dessas palavras:
aqui, é, sempre, este, agora. "- Onde é aqui? - implora agora/... o que é", reescreve 30 anos
mais tarde, com a obsessão de um prisioneiro da linguagem, sem ilusões quanto à possibiihdade
de fuga.
"Mensch, werde wesentlich": Homem, sê essencial é um mandamento do poeta alemão Angelus Silesius
(1624-1677), traduzido por Rubens não só para o português, mas para sua poesia, a despeito ou a
respeito de si. Toda poesia moderna expressa o conflito entre um "eu", engajado com a representação
da realidade, e uma outra dimensão da literatura, que Yeats chamava "alma", mas que hoje em dia,
depois das lições de Benjamin e De Man, é mais conhecida por "alegoria": a subitituição infinita
dos significados, num reino puramente linguístico.
A tensão entre os dois modos desafia a própria noção de identidade. Quando o poeta banha-se ao
"sol gramatical", ou observa o "vôo circunflexo de uma ave", já faz ver até que ponto a experiência
é presa da língua. Quando se volta - e são muitas vezes - para a lembrança, ou exortação erótica,
dá mostras do que não se pode quando a linguagem aceita sua fraqueza e depõe as armas frente a algo
mais simples e maior. A questão é saber até que ponto essa vitória é verdadeira, ou só mais uma
ironia.
Um estudioso tão sofisticado do romantismo não escapa nunca dessa trança de autocriação e autodestruição,
mas pode multiplicar, à sua maneira, com acentos locais, o mesmo movimento infinito rumo à "liberdade
inalcançável". Cioran falava de Jorge Luis Borges como o "Schlegel da Patagônia"; e podemos falar,
agora, com o devido senso de medida, do poeta ubens Rodrigues Torres Filho como nosso Novalis da
praça Vilaboim,voltado à poesia da ironia (a favor e contra a ironia) como todo o engenho de um mestre
do fim do século.
0 que, na arte poética do "Vôo Circunflexo" (1981), era um "desespero de gala", tornou-se, na
"psiconáutica" de Poros (1989), a "modéstia de gala" do humor. É por frestas assim, nos choques entre
palavras e imagens, que paeea o sopro divino da malícia, para rein-ventar por um instante, minimamente
que seja, a nossa vida, ou a nossa língua. Essa ironia é uma constante na sua poesia e é bom frisar
que não se trata de uma figura de linguagem: é uma condição do texto inteiro. Isso explica, em parte,
a desmistificação da forma em poemas que vão vestindo as roupas mais variadas, do soneto ao aforismo,
da anedota à meditação, do verso regular à linha livre e à "prosa porosa", ou "respirada", onde o
efeito poético fica reservado às "imagens-surpresa" e ao "barroquismo fônico" (ver a entrevista
a José Américo Motta Pessanha). O esforço constante é fazer as formas "coincidirem consigo
mesmas", para recuperar o "esplendor perdido da identidade". É um jogo de cartas marcadas: o poeta perde
sempre para a poesia.
"Se não há fala direta/ em quantas palavras movo/ é como ser um profeta/ dizendo: NADA, de novo" ("Ab Ovo").]
Não há contradição no fato do poeta da imediatez ser um artesão de lugares-comuns, palavras banais e "topoi".
Sol, lua, peixes, pássaros, flores, frutas, noite, coração: qualquer palavra é a palavra errada certa
para dizer o que não pode ser dito.
Vale se atualizar com as crianças: desplugado, ovni, paquerar, ficam lado a lado com dêixis,
nardos, anthropos, licantropismo. As referências vão de Marcial ("Como te vejo, Laís? bocas e olhos
sutis... para os imbecis".) e Horácio. ("Doce na memória, amiga, não cede ao tempo veloz"), passando por
Pascal e a tradição conceptista, até, muito especialmente, os românticos alemães como Rimbaud ou cummings
(ver o poema em inglês "cumning's out", no "Vôo Circunflexo", e sua tradução em "Retrovar").
Sem falar, bem mais de perto, em João Cabral de Melo Neto, cujas cadências se escutam aqui e ali,
mas descarrilhadas; em Drummond, ecoando nos jogos semânticos, mas com outro ritmo; e também
homenageado numa delicada elegia, em formato anúncio classificado.. Paulo Leminski, cuja ironia
mais popular forma contraponto com a poesia de "Novolume".
"Cada um eacontra noa antigos o que deseja ou preciasa - principalmente a si mesmo", aprendemos
nos fragmentos de Schlegel (de quem, fora da poesia, Rubens é um grande explicador e editor).
Toda essa procissão de fantasma que habita a sua obra vai se moldando ao som de uma outra mesma
música, até que "resta um fio de voz, buscando rumo para o contorno" ("Plano-sequência"), nas
falsas "serestas" que se destinam "a nenhum ouvido e dão ao que se cala e ao que nos falta um nome familiar".
O nome é familiar, mas estranho, no sentido freudiano; e o poeta é reticente demais, ou sábio demais, para
entregar o jogo.
Em momentos menos felizes, a poesia e a ironia descambem para trocadilhoes tristes ("niilirismo",
"pois ia", Matissemorfose"; ou o próprio título do livro), que podem, mesmo assim, no contexto,
ser lidos como refugo da língua, ciombinações arbitrárias fracassadas dentro da arbitrariedade
geral do fracasso geral da língua. Em momentos menos felizes ainda, mas num outro sentido, o que
se escuta está para além dessa bufonaria transcedental, onde a "palavra água" e a "palavra sede"
podem ter "feliz encontro".
Ninguém fica à vontade numa poesia que já adivinha, a cada passo, suas possibilidades. 0 esforço
de Rubens, descrito acima como desmistificaçãoo da forma, vai mais longe que isto. Descobrir uma
nova vida para as idéias nas palavras já é trabalho bastante e exige uma capacidade rara de
desassossego. Nem isso, porém, justificaria essas dezenas e dezenas de poemas aos olhos do
próprio autor. Poetas plenamente irônicos estão para além da ironia, e o que se escuta na sua
literatura não é contorção e reflexão, comédia e farsa. A cada verso que se apresenta, com o
peso da poesia e da experiência nas costas, sobre a parede do fundo dos olhos projeta-se uma outra
sombra. Talvez um poeta hoje não tenha mesmo outros meios para fazer ouvir essa dor.
0 livro começa, como termina (a ordem cronológica é invertida), com um poema amoroso. No ultimo, de 1959,
a frustração do poeta jovem, em tons que evocam T. S. Eliot, é ver a vida do corpo passar, projetada
na amada inacessível, com seu livro apenas nas mãos. No primeiro, de 1997, aquela imediatez tão
perseguida, há tantos anos, parece se realizar, tranquilamente, na confluência de amor, sexo e
palavras. Divisões abolidas, dicção apaziguada, o narrador "enceguecido" pelo corpo da mulher chega
à simplicidade da "composição", hipnotizado com "a ausência de algas e sereias".
A "imensidão resplandescente e sem arestas" sugere outra voz, que o livro inteiro de certa forma
lutou para conquistar. E o livro se abre, então, para trás e para a frente, sugerindo outras
felicidades."Ouve bater a pálpebra do instante." É um som quase impossível, mas que ganha aqui
reverberações próprias e um timbre inconfundível. "Paisagens anteriormente anônimas recuam",
cobertas pela nova poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho.
(Folha de S. Paulo, 7 de dezembro de 1997) |
O Trapezista Pensando
Fernando Paixão
Abre-se um livro de poemas e lá estão as palavras em estado de movimento. Quer dizer, há uma espécie de desassossego entregue às nossas mãos. Ato deliberado ou fronteiriço com o sonho, as imagens e os pensamentos fixados em versos investem-se de ritmo e de contorção de modo a sensibilizar os olhos de quem está lendo. Quebram-se as linhas, separam-se as estrofes, sílabas tônicas e átonas produzem ecos, pausas, e ao rés da página estendem-se as torções de uma serpente com a cabeça fixada ao título da primeira linha. Temos aí a poesia.
Será que temos?
Acreditar em tais generalidades, sem um pingo de descrédito, equivale a tomar as coisas todas por encantadas, em qualquer esquina sendo possível cumprir a liturgia da atenção miúda. Mas, sabemos que não é bem assim. Por trás das idéias feitas o que se esconde muitas vezes é a repetição de um hábito, passos que repisam o leito gasto de um caminho, sem o perceber. No campo da poesia não é diferente: os livros proliferam, a maioria dos poetas se converte em conversadores de salão, e os poemas, bem... quantos e quantos poemas se contorcionam por si mesmos, surrado moto próprio, e entregam-se a uma repetição no vazio.
Necessário, então, ler uma montanha de livros para se ter a sorte de encontrar algo próximo à autêntica criação poética. Tantos são os clichês e os valores prévios em circulação que fica difícil descer ao branco da página para o encontro sensível e plástico de frases em andamento. Ao mesmo tempo, é esse o melhor desafio que recompensa o leitor interessado. Entregues a um virar de páginas, somos surpreendidos por um pensamento forte, uma imagem que sobressalta e ganha forma aérea. O olho se curva para uma espécie de compenetração interna: ali temos a poesia.
Sem dúvida, este livro de Rubens Rodrigues Torres Filho se oferece como um campo privilegiado para o jogo de atenção poética. Mas, alertemos desde já, Novolume não compõe uma paisagem regular à qual o olhar se acomoda na expectativa de uma harmonia repousante. Saltos e desvios por ângulos agudos são uma constante destas páginas. Estamos diante de um poeta vigoroso em que se revela, desde a primeira vista, uma astuta capacidade de ganhar distância em relação às dobras do mundo. Como? Podemos responder com seus versos:
"Em nome do poema
estar aqui e rir. Ser pequeno,
andar aceso: por qual vão
se consumir?
Prezado rio das coisas,
qual dos dois: fluir, florir?
...."
("poema sem nome", in Poros)
São duas as perguntas colocadas nestas poucas linhas. Sabe o poeta que, para incandescer a língua, é importante escolher o vão certo por onde correr o poema , voltado para o riso ou para o toque lírico. Escreve, pois, uma peça que se interroga a si mesma. Mas, vale a pena alertar, não observemos nesse ato uma vocação narcísica para a metalinguagem. Pelo contrário, aqui a dúvida se enuncia por força de um rigor que não se deixa baratear. Ao enunciar o dilema, o autor zela por um sentido de integridade que também questiona o lugar do poema frente à circunstância ("nem sei se o banal espreita/ com malícia, devagar"), como que fazendo um prévio acerto de contas. O sujeito entrega-se ao curso das imagens com a liberdade de quem acolhe vislumbres de origem.
Obstinado leitor e tradutor dos românticos alemães, talvez o que mais atemorize Rubens seja justamente resvalar por um romantismo lasso e repisado. Nada pior do que sentir ou ver em falso, ele nos sugere. Contra essa possibilidade, aciona muitas vezes uma lâmina de afiada ironia, corroendo internamente qualquer possibilidade de identificação fácil ou equivocada. Outras vezes, mobiliza a concisão lírica, em versos cuja potência se funda menos pela estranheza do imaginário do que pelo efeito sutil de um olhar que sobrevoa a cena escolhida e recolhe um rol de notícias subjetivas: "teu nome gravado nas laranjas", "...a água/ lavando a chuva por dentro", e assim por diante.
Digamos então: o poeta pensa, entrega-se à sinuosidade volteada do pensamento como maneira voluntária para se pôr rente ao "rio das coisas". Idéia suspensa num fio de voz, o poema conta com essa luz para cumprir a sina da expressão. Há algo a ser dito, um pressentimento cresce, inquieta a cabeça e insiste em ganhar forma no espaço, que é a maneira direta de se transformar em comentário do mundo. Alías, na poesia de Rubens o intuito de comentário chega mesmo a ser uma constante, enveredando por soluções as mais inesperadas. Seja na hora da fulguração lírica (presente em maior grau nos livros Investigação do olhar e O vôo circunflexo) ou na suspensão reflexiva, enfatizada por um uso recorrente de adjetivos, a linguagem se põe em estado de atenção porque "no colo das estrelas/ um paradoxo sorridente hesita".
Se assim é, ao poeta cabe aplicar ao repertório das coisas e das situações uma palavra modulada por certo esclarecimento. Este, por sua vez, para que engendre a função reveladora da poesia, deve escapar à racionalidade social e aos achados do sentimentalismo de praxe. O desafio que conta está em entregar-se a um arriscado e primordial fluxo de visões. É quando o lume de Rubens nos toca de pronto: ao pensar com rigor, ele recupera a substância imediata do sentimento (invertendo a máxima cartesiana da segunda meditação) e funda no poema um percurso em que argumento e imagem se entrelaçam.
Nosso poeta ganha ares de trapezista, então. Atento para comentar os acidentes dos dias ou para lidar com a matéria autobiográfica, atraído pela particularidade dos objetos ou pela música dos nomes, ele de fato "pede licença para ser pássaro" e termina por empreender um vôo de resultado circunflexo. Em pleno salto, entrega-se a desvios que amplificam e carregam de sutileza a ressonância do poema: "a curta canção que nasce...Tem firmezas de arremesso/ e desesperos de gala". Dono de uma extraordinária intimidade com as palavras, entrega-se a volteios, giros e torções de sintaxe correspondentes a um desregramento não só dos sentidos (na acepção de Rimbaud) mas sobretudo dos significados que precipitam a investigação do olhar. Transformado em sinal, o raciocínio se transmuda em poesia, e o poema se desdobra em fragmento de linguagem e experiência:
"...A presença se adensa. Pérolas, vôos de pássaro sem pássaro, pouso de plumas, diretamente, no mesmo ar. Laços, pequenas liberdades, abstratas no espaço disponível. Cena, cena. Dedos articulando solidões e seus espaços.Refinada química dos afetos, cristalizações de um fluxo sem nome. Imagens. Intensidades mentais."
("Plano-sequência", A letra descalça).
Por certo o convívio com as questões filosóficas e a leitura intensiva de poetas clássicos e modernos contribuem (e muito) para o desempenho refinado das pequenas liberdades. Frequentemente deparamos nestes textos com um diálogo, explícito ou implícito, em relação a outros autores ou temas da cultura. No entanto, para surpresa dos cotejadores, não se pode prever o seu efeito; ora o dado intelectual serve de ponto de partida e de fato conforma e contamina o poema em questão (como se vê em "Matissemorfose", por exemplo), ora torna-se alavanca para um giro às avessas, deixando a nu a impropriedade dos intelectualismos ( como no caso de "O xis da dêixis"). À luz da poesia, o saber universitário não basta por si mesmo, nem se presta a ser condimento de uma profética explicação dos acontecimentos; posto à prova da necessidade poética, pode surpreender e até mesmo dar uma cambalhota chegando ao grau zero do pastiche: "Paciência e esperança. Os grandes temas. Nossos clássicos".
Do mesmo modo, também o jogo amoroso se multiplica em lances imprevisíveis. Tema privilegiado para os saltos arriscados, merece do poeta uma atenção nos detalhes, podendo colher da presença alheia um fragmento de elegia ou o registro prosaico do cotidiano. Se em Investigação do olhar (de 1963) ainda guardava resquícios de um lirismo epifânico, visivelmente embebido em surrealismo, nos livros subseqüentes sucedeu um longo percurso no sentido de reter da experiência dos afetos uma corporeidade crua e fugidia. Paralelamente, a cena erótica ganhou em ênfase. As situações do corpo-a-corpo tanto podem ser captadas na forma imediata do tesão quanto pelos sinais de maravilhoso que cintilam com a carne.
Como num trapézio, a oscilação entre o alto e o baixo fecha um círculo envolvendo tensão e vertigem. Vamos ao circo e sentimos o frenesi, a arte do trapezista se desenha no intervalo. Sabendo disso, Rubens soube renunciar conscientemente à possibilidade de uma poética monotonamente elevada. Conseguiu também escapar à armadilha que o emblema de poeta lhe preparava. Bem formado, empregado na universidade, poderia ter-se entronizado como douto verse maker. Mas quem o conhece de perto sabe que esse tipo de carteirinha não lhe traria qualquer satisfação. Coerente, fascinado pelo arremesso, optou por colocar o rosto no mundo e contaminar-se dos rumores, sem prévias explicações.
Estamos diante de um poesia exigente que, sem renegar a sua formação, não abdica da inteligência para "enfeitiçar o acaso".
Aos leitores, a parte que lhes cabe: pôr o olho nos poemas e saltar da solidão --
--- e o trapezista não terá pensado em vão.
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Ironia governa poemas de "Novolume"
José Paulo Paes
Ela é o elo entre a face visível e a oculta da lírica reunida de
Rubens Rodrigues Torres Filho
O poema de abertura de Novolume, composição, recorre a imagem
da paisagem lunar para enaltecer o corpo feminino:
"Enceguecido por esse teu corpo
paisagem lunar em noite de Terra cheia,
vejo que o Mar da Tranqüilidade me hipnotiza
com sua ausência de algas e sereias.
Mas quem quer atmosfera? Basta
a vertigem veloz soprando nos cabelos
que ornam as regiões mais aprazíveis
da imensidão resplandecente e sem arestas."
Embora os laços metafóricos entre lua e mulher sejam notoriamente cediços,
força é reconhecer-lhes um remoçamento aqui por via do deslocamento
qualitativo, da alusão desdobrada e da notação paradoxal. Deslocado de Lua
para Terra, o adjetivo "cheia" se desautomatiza, do mesmo passo em que o
"sem arestas" requalifica a acidentada orografia lunar em maciez de curva
feminina. Isso dentro da logica do símile, o que já não se pode dizer da
"vertigem veloz" soprando num mundo sem atmosfera, notação que serve para
transfigurar paradoxalmente a fria impassibilidade mineral em tepidez de
carne viva. Sob esse sopro vertiginoso - que torna supérfluo o penduricalho
mítico das sereias a que a alusao marítima implicitamente convidaria, - o
Mar da Tranquilidade sexualiza-se de imediato naquelas "regiões mais
apraziveis" sobre cuja precisa localização anatômica os ornatos pilosos
não deixam pairar qualquer dúvida.
0 leitor com um mínimo de sensibilidade para o poético certamente entenderá
os versos acima sem auxílio da simplória análise de texto de que os fiz
acompanhar, tão-só para ilustrar aquilo que, recorrendo de novo ao símile
lunar, se poderia chamar de face visível da poesia de Rubens Rodrigues
Torres Filho. Visível porque o imbricamento, ali, da subjetividade do poeta
com a do leitor se faz por pontos de contato comuns sobre os quais assenta
a ponte empática da compreensão ou coapreensão.
No avesso dessa face visível, a produção de Rubens Rodrigues Torres Filho
ostenta o que se poderia chamar uma face oculta em cujas sombras se embosca
uma subjetividade esquiva. Esquiva não a ponto de enclausurar-se em silêncio
de autista, mas dando sinal de si numa fala que se configura, as mais das
vezes, como um quase idioleto. "Quase" porque, recorrendo ele às palavras
comuns da tribo, estaríamos aptos a compreendê-lo não fosse o caprichoso
encadeamento com que as agencia numa espécie de código privativo onde os
vínculos gramaticais parecem só levar a uma entropia do sentido. É o que
da a pensar, três páginas adiante de composição, um poema como atmosférica:
"Chuva com tijolos bolor
falada enfileirados falta pouco
iluminasse novo e pingo um só
ociosamente instala-se feliz
líquida e triunfante demorar-se"
Essa face oculta parece ser tão consubstancial a poesia de Rubens Rodrigues
Torres Filho quanto a sua face visível. Uma e outra coexistem ao longo dos
cinco livros que, acrescidos de outros poemas novos ou inéditos e de traduções
esparsas, constituem este Novolume, que a Iluminuras lança dia 6.
Trata-se de uma summa que abrange retrospectivamente 34 anos de atividade
poética e que se ordena em ordem cronológica inversa. Ou seja, começa com
os Poemas Novos de 1994-1997, a que se seguem, sucessivamente,
Retrovar de 1993, Poros de 1989, A letra descalça
de 1985, 0 vôo circunflexo de 1981 e Investigação do olhar de 1963.
A despeito da sua variedade de temas e motivos, registros de dicção e tipos
de enfoque, os numerosos poemas de Novolume estão interligados por
um nexo de unidade, o qual é mais prontamente reconhecível, como seria de
esperar, nos poemas que lhe compõem a face visível. No prefácio que escreveu
para Novolume, Fernando Paixão sublinha os traços fisionômicos dessa
face quando ali aponta a alternância de momentos de "fulguração lírica" com
momentos de "suspensão reflexiva" e quando vê virtuosismo de trapezista nos
"volteios, giros e torções de sintaxe", nos saltos da "matéria autobiográfica"
para a "particularidade dos objetos" ou para a "música dos nomes" em que o
autor de Novolume repetidamente se compraz.
É ilustrativo do virtuosismo de Rubens Rodrigues Torres Filho o seu gosto
pelos poemas de uma rima só, como comunicação, com a sua ladainha de "- ês"
e "-es" a agenciar, por paralelismos sonoros a maneira de Lewis Carroll ou
Edward Lear, um elenco de itens tão disparatado quanto saboroso. Ilustrativo
também do mesmo virtuosismo é o ouvido sempre afiado para o jogo de ecos/idéias
dos trocadilhos, conforme pode ser exemplarmente visto em senha, onde
"abracadabra", ligada umbelicalmente ao título do poema, governa todo o
desenvolvimento da elocução.
Mais que a mera noção de semelhança, os paralelos de som/sentido servem
para explorar, em poesia, a noção de diferença na semelhança. A mesma ótica
das similitudes diferenciadoras recorre também a ironia quando, um olho
voltado para o sim, o outro atento ao não, se dispõe ela a esquadrinhar os
desconcertos do mundo. Nos poemas de Rubens Rodrigues Torres Filho, os jogos
trocadilhescos não são gratuitos. Traduzem, homorganicamente, os vislumbres
de uma visão irônica, porque tanto crítica como autocrítica, do eu e do
mundo. Nessa visão, os múltiplos ângulos de visada - lírico, reflexivo,
autobiográfico, objetivista, metalingüístico - acabam por se resolver numa
unidade feita ora de contraposições, ora de conta-minações, cuja instabilidade
e o melhor penhor do seu continuado dinamismo.
Assim é que ao registro ardiloso de um epigrama como elogio do oco
pode-se contrapor o registro ingênuo de trovas populares - contraposição
aliás bastante relativa, porque um e outras foram escritos sob o mesmo signo
da paródia. E se outra miragem cobre o encontro amroso com "uma rede
levíssima de nexos e de elisões", não hesita poesia pura em dar
estatuto lírico a uma chulice como "peido" para hiperbolizar o mesmo tipo
de encontro. As apenas três páginas a separar um do outro os dois momentos
líricos parecem apontar para nexos mais de contaminação que de contra-posição.
Não me parece uma recorrência mimética daquele viés metalingüístico que há
já um bom tempo enferma a poesia brasileira, sobretudo a proclamadamente
mais jovem, o freqüente debruçamento da poesia de Rubens Rodrigues Torres
Filho sobre o seu próprio fazer-se. Teria antes a ver com o viés
sistematicamente irônico da visada que a enforma: o olho da ironia
compraz-se amiúde em esquadrinhar o próprio ato de ver. Em o lamento,
por exemplo, a literatura aparece como uma empresa onírica apostada em
compor "pontes de absurdo sentido entre imagens" ante cujo "inatingível
explendor (...) o real se retira humilhado". Já relance desqualifica
a poética coleridgeana da emoção relembrada na tranqüilidade para postular
a impossibilidade de recuperarmos a posteriori a tonalidade original da
sensação: "o que se quer, por se querer, não está mais".
É bem de ver que as pontes de sentido que, na sua face visível, a poesia de
Rubens Rodrigues Torres Filho costuma lançar entre as palavras nada têm
daquele absurdo de programa que o surrealismo - cartesianismo do inconsciente:
"sonho, logo existo" - se comprazia em cultivar. São pontes antes de uma agudeza
por assim dizer conceptista, a qual não é de estranhar em quem, poeta e
filósofo a um só tempo, sabe jogar tão destramente com as idéias como joga
com as palavras. Mas a circunstância de, face visível, a lucidez conceptista
dividir amiúde o terreno com a obscuridade da face oculta aponta, mais uma
vez, para o primado da ironia como faculdade-mestra a governar todas as
aporias da poética de Rubens Rodrigues Torres Filho. É ela quem lhe
faculta, sem risco de contradição, praticar desembaraçadamente aquele
"alucinar quase lúcido" a que faz referência em lunático e de que,
com a sua riqueza de visadas e a sua mestria artesanal, Novolume nos
dá tão repetida notícia.
(O Estado de S. Paulo, 1 de novembro de 1997)
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ÁLVARO ALVES DE FARIA
Rubens Rodrigues Torres Filho tem em Novolume um balanço de sua obra,
ressaltando a unidade e a coerência poética desde o primeiro livro. Com uma
observação: cada poema é sempre uma experiência diferente. Há de se querer
sempre o poema como jogo de idéias. Trata-se de uma obstinação. Seria como
se, fora disso, não existisse nem poema, nem poesia.
No livro A letra descalça, de 1985, o poeta ofereceu uma pequena jóia,
um certo "poema semipronto", ao qual sugeriu "adicionar água e levar ao fogo
brando". Pouquíssimas palavras para mostrar uma vasta paisagem de narrativa do
poema:
Dante fez o quis
...Beatriz.
"
Em Poros, de 1989 - a melhor poesia de Rubesn - ele diz em Poema sem
Nome. "Em nome do poema/ estar aqui e rir. Ser pequeno,/ andar aceso:
por qual vão/ se consumir?"
Não é sempre que os poemas correm - ou podem corres - como em "(duplo) resíduo",
de A letra descalça:
"Anntigamente eu acreditava nos direitos
de minha subjetividade sobereana
Hoje em dia não há mais direitos nem esquerdos:
um fio apenas, sem espessura
marca o limite do mundo."
No caso, um poema livre de amarras, que deixa a poesia fluir como fluem as
coisas naturais.
Rubens Rodrigues Torres Filho é um poeta competente, mesmo envolvido em
excessos de cercos à palavra e à própria manifestação da poesia, que se
sufoca. É preciso, no entanto, saber entrar nesse universo construído pelo
poeta, para quem a poesia é só reconhecível, dificilmente definível. É preciso
não apenas entrar na palavra, mas descobrir o que está além e aquém da palvra,
sem que a poesia se perca num longo exercício de intenções.
A poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho requer cuidados especiais. Um
exercício de descoberta. No poema Linguagem, de O vôo circunflexo,
de 1981, ele escreveu:
"Meu canto se agrada do agudo
e do escasso.
Por isso só perde-se em olhos moucos.
Ele se distancia do precário
mas por um fio tão fraco
que tem o sentimento claro e pouco.
Pode ser mais que um esclarecimento poético. Talvez a maneira mais concisa
de informar o seu ofício. Fica claro que a poesia não pode ser uma ostra.
Daí a necessidade de se descobrir esse universo de Rubens Rodrigues Torres
Filho, que se quer de portas quase fechadas. Vale o brilho que vem das
frestas, intenso e ao mesmo tempo ofuscado por sombras fincadas nas
palavras. É o poema da poesia contida. É o poema contido na poesia possível.
(Jornal da Tarde, 25 de outubro de 1997)
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