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    Matérias e Críticas

    ENSAIOS DE FILOSOFIA ILUSTRADA


    matéria publicada: CADERNO 2 - O ESTADO DE S.PAULO
    Domingo, 5 de Dezembro de 2004

    Lições de um pensador incansável Obra que Rubens Rodrigues Torres Filho lançou em 1987 é reeditada com dois novos textos

    A primeira edição destes Ensaios de Filosofia Ilustrada foi publicada em 1987. Nesta reedição da editora Iluminuras, que será lançada na quinta-feira, às 19 horas, na Casa do Saber (Rua Doutor Mário Ferraz, 414, Jardim Paulista, tel. 3707-8900), além de um prefácio de Bento Prado Jr., que vem se juntar ao da primeira edição, assinado por Marilena Chauí, foram inseridos dois novos ensaios, que dão ainda mais realce às linhas essenciais do livro, isto é, são novas demonstrações de vitalidade da argúcia filosófica que o anima.

    Cada ensaio do volume constitui variante de uma mesma armação conceitual e estilística bem definida. Como nos bons estudos literários, o texto

    começa, invariavelmente, pela escolha de uma amostra (de alta densidade filológica) que servirá de mote ao comentário: algumas páginas de Diderot, passagens de Kant, de Schopenhauer ou de Nietzsche, um verbete da Enciclopédia, uma peça ou versos de Goethe, e até mesmo as acepções esquivas da palavra "filósofo" são os pretextos destes textos que, como afirma o breve "esclarecimento" do autor, pretendem ilustrar "alguns poucos pontos bem definidos de História da Filosofia Moderna".

    A forma "ensaio" tem, assim, uma acepção característica e bem precisa neste livro: os ensaios são uma forma de ilustração. Mas o que exatamente eles viriam a "ilustrar"?

    Desde a reviravolta realizada pela crítica transcendental, a filosofia perdeu, como mostrou Gérard Lebrun, os seus até então legítimos objetos. O que teria surgido no lugar deles? Segundo Lebrun, o conhecimento metafísico teria sido substituído pelos novos "temas" que passamos a conhecer: as ideologias, as ciências humanas... A partir dessas preciosas coordenadas, Rubens Rodrigues Torres Filho pôde mapear um terreno que desde então passará a ser o seu: ao destruir os supostos suportes objetivos das coisas, a revolução kantiana não teria abalado também as bases sobre as quais se erguia o próprio discurso filosófico? Como é possível, desde então, um discurso sem nenhuma ingenuidade dogmática, um discurso que já não pode se apoiar na agora problemática objetividade das coisas, um discurso, enfim, que, impedido de recorrer a qualquer instância exterior ou superior, só pode se constituir numa relação interior com o espírito? Esta seria a questão central da filosofia fichtiana, analisada em O Espírito e a Letra. A Crítica da Imaginação Pura em Fichte, tese de doutoramento publicada em 1975.

    Depois do estudo sobre Fichte, a radicalidade do programa filosófico inaugurado pela filosofia kantiana pode então ser ainda mais ampla e profundamente explorada: com o idealismo alemão, o problema passa a ser não apenas o de uma crise que atinge os objetos da metafísica, mas também, e talvez ainda mais agudamente, o de uma crise geral do discurso filosófico, que coloca dificuldades para que se reconheça até mesmo quem é, a partir de agora, o seu autor. E de fato a pergunta que parece puxar o fio das principais indagações dos Ensaios de Filosofia Ilustrada é apresentada logo de saída, no primeiro ensaio do volume: "Como o sujeito da filosofia se torna, por sua vez, questão?"

    Percorrendo os demais ensaios do livro, percebemos que eles vão pondo em cena diversos personagens que dão voz a esse sujeito problemático. São figuras bem localizadas na história, na filosofia e na literatura, como o sobrinho de Rameau, o déspota ilustrado, a filha natural do drama de Goethe, que aparecem como prefigurações ou encarnações daquele problemático sujeito do discurso filosófico. Também comparecem figuras mais "abstratas", porém não menos fulgurantes da história do pensamento posterior e nosso contemporâneo, como o absoluto hegeliano, o inconsciente freudiano, o estruturalismo, etc. Quem poderia imaginar encontrar, em Kant, a matriz de tantas transfigurações? É que o transcendental, explica-nos o autor, pode ser comparado a uma espécie de "aurora, limbo matinal onde há significações antes de haver mundo..." O transcendental está em toda parte e em nenhuma. Ele é aquela "terceira margem" que dá "consistência e sentido ao nosso discurso real".

    Buscando uma interpretação para a antropologia estrutural, Paul Ricoeur afirmou que ela seria um "sistema de categorias sem referência a um sujeito pensante" ou ainda "um kantismo sem sujeito transcendental". Lévy-Strauss se prontificou a dizer que concordava com a definição. Mas como entender esse "kantismo sem sujeito transcendental"? Ao subtrair o sujeito da antropologia estrutural, a explicação proposta por Ricoeur é significativa, porque indica o movimento de "autonomização" por que passaram os códigos de significação e interpretação: se é assim, estes, no final das contas, nada mais seriam que frutos tardios do estreito relacionamento de subjetividade e discurso que se inicia com a revolução copernicana, e que culmina na idéia romântica de uma total interioridade ou intransitividade da linguagem.

    Os recortes operados pelo livro para ilustrar isso são surpreendentes e precisos: a genial articulação de ser e significação que Sartre tão bem encontra numa tela de Tintoretto pode ser lida como uma "redescoberta" da concepção do simbólico de Schelling, e a hermenêutica do "eterno retorno" de Nietzsche teria como pressuposto exatamente a mesma tautologia transcendental kantiana que ele pretendia demolir. A aproximação de autores aparentemente tão distantes produziu também, em pequenos textos não publicados no livro, outros feitos admiráveis, que merecem ser lembrados. Um deles é a breve nota Por Que Estudamos?, sobre a arte de ler em Novalis. Também sobre Novalis é a introdução à tradução da coletânea Pólen, na qual se procura mostrar como o poeta e pensador romântico constrói seus fragmentos valendo-se "de modo consciente e metódico" dos procedimentos oníricos de "deslocamento" e "condensação" que um século mais tarde Freud utilizou para explicar o mecanismo onírico. Novalis seria então o precursor da psicanálise? A obsessão pela filogênese, eis mais uma lição do autor, faz perder o essencial. Em vez de história evolutiva do pensamento e tantas outras histórias da recepção, que tal pensar em situar o romantismo de Novalis, o estruturalismo de Levy-Strauss e a psicanálise de Freud numa história (não-escolar) da filosofia? O discurso filosófico: quem poderá dizer qual é seu paradeiro definitivo?

    Márcio Suzuki, professor de estética do Departamento de Filosofia da USP









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