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O Vôo Circunflexo

1.
É bom morrer d’amor mas não
viver do referido material.

As flores abrem asas de manhã
à noite pousa um súbito metal.

Queremos bocas pandas, ar repleto,
mas teu corpo é meu travo mais direto.

Ao longo se dedilha uma outra urgência,
mas o teu corpo é campo de paciências.

É bom cantar d’amor mas não
desencantar o clássico animal.

2.
Assinalado, perfeito
e o corpo de que te assisto
na minha noite mais crua

e te destaco do peito
como teu nome insinua.
Ao longo a fala que deito

e nosso espanto pontua.
À margem direita isto:
o choro, em alto registro.


anulaluna
A lua, mestra de aparências,
acaba de queimar-se. Frio, persiste
seu contorno. Ela, oca,
suspira apaixonada.

Ah, verso

verso meu resista
a essa dura escansão. Chame umas pombas
para pousar no ombro, outrora alado.
Saudade ache pouso deixe estar
meu curto coração

pois haverá manhã se deus quiser
ou mesmo que não queira, à custa
de tanto (bem ou mal) amar.

desenvolturas
Nós nos queremos bem: ah que derrama,
que hemorragia de sentimentos!
Irmãos! que almas transparentes temos!
O chão nos foge sob os pés, tão leve.
Podemos nos olhar pelos avessos
que é tudo luz. O bem que nos queremos
nos santifica até aos intestinos.
Que vísceras de vidro! Que evidência!
Meu pênis se eletriza – é um travessão! Um hífen!
Um traço-de-união entre duas almas
tão juntas, tão aninhadinhas
uma na outra que dá gosto e enlevos.
Nos sabemos de cor, rosto e relevos.
Tudo nos dança: umas fosforescências
embevecidas lambem nossos beiços
e um simples esplendor nos satisfaz!


redondilha
Deflorei a margarida
tão pura do meu jardim.
Ela agora, sem recalques,
é rosa de mil encantos.
Eu sou morcego, sou negro
profeta da perdição.
Ela dança com as folhas
auri-verdes do perdião.
Eu, seu amante e carrasco,
sou alvo de duro asco,
cavalo preto, de casco
cor da lua candidata
ingrata da oposição.
Margarida cor de rosa,
mas com outra transparência,
orvalho sem virulência
caindo em tua pestana,
permita que eu desvende
sem ser indiscreto, creia,
tuas outras qualidades
que o mundo esquece ou cerceia:
a curva de tua anca,
o aparato de teu seio,
a avenida de teu corpo
que dá mão para o infinito,
as outras tantas marias
provindas da mesma concha
despetalada ao luar.
Vou dizer, deus me castigue,
as horas claras que tive
e você teve, admita,
em nossa chã companhia.
Como rimos e pudera,
num espaço tão restrito.
Como nosso canto era
refratário a todo ritmo,
menos ao nosso, ao interno,
que se fizera perito
em persistir sem remédio.
Sim, fomos, se isso te agrada,
amigos mais que perfeitos,
como a água o é da sede.
Hoje ainda peço trégua
e me espanto de obtê-la
para falar de teu zelo,
de tua tranqüila jaça,
de teu riso. De teu gelo.
E hoje sem que se aprove
nem se renegue tal feito,
só sobra, mal naufragado,
este atônito relevo
de medos, fios e penugens
que se dissipam bem cedo.
E se conto tais estórias
não é por falta de sono
nem para alimentar o metro
desta falsa redondilha.
Mas para que o povo saiba
e no porvir não omita
com quanta insônia e vertigem
se faz um pouco de música
para povoar seu ouvido.


o rio dizia
O rio dizia
que não corria
mas era claro
seu abandono.

Água ele tinha,
era a seu gosto.
Valsa ele tinha,
pois tinha vôo.

Por ali fomos,
nos entornando:
águas extremas,
pequeno oceano.

Perco meu nexo
quando te encontro
ao longo da anca,
ao fio do ombro.

Riste? sorriste?
Por ali fomos,
nesses caminhos,
nesses retornos.


acre lírica
1.
Quem pede o lado de dentro
quer o espaço alucinado:
um lado que esteja dentro,
um dentro que seja alado.

Que mal estava aninhado,
secretamente assanhado,
na concha de qual palavra?

Entre que casca e que ovo
corre eternamente novo
o fio da fragilidade?

Corre o verso pelo inverso
e o delírio pelo lírio
na lírica do extravio.

Por onde passa essa falha?
Que má paixão se agasalha
nas labaredas do frio?
2.
Lúcida lira delira
dócil de lírico amor
e vibra fibra por fibra
nas garras do mago Amor,

não por você, preferida,
pretérita ou preterida
que a lira sabe de cor.

Eis que meu aço efetivo
sem meu cálice afetivo
e, sem vaso prévio, a flor
deixam a lira mais pura

e, em desespero de cura,
mais mágica e minuciosa,
mais trágica e menos ciosa
de girar ao teu redor.

O pássaro do poema
abre as asas, orvalhadas
ou molhadas de suor?

capa e ilustrações Marcia Rothstein
editora Massao Ohno - Roswitha Kempf
ano 1981








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