BIBLIOTECA PÓLEN
Entrevista
Coleção de filosofia prima pelas traduções
José Luís Silva
O filósofo Rubens Rodrigues Torres Filho, responsável pela ótima 'Biblioteca Pólen',
da Editora Iluminuras, diz em entrevista exclusiva ao Cultura que, além de se preocupar
com a forma como os diversos autores que a compõem se lêem entre si, privilegia o fato
de a filosofia ser feita na linguagem e se transmitir através da linguagem, o que o leva
a buscá-la em estado nascente e não como uma disciplina.
Há pouco mais de 20 anos, os estudiosos brasileiros de filosofia não podiam sequer sonhar
em ter acesso aos clássicos em sua própria língua. 0 primeiro impulso de tradução no País foi
dado pela coleção Os Pensadores (Editora Abril/Nova Cultural). Entre outros tradutores,
ela revelou Rubens Rodrigues Torres Filho, que traduziu os filósofos românticos alemães Johann
Gottlieb Fichte e Friedrich Schelling, além de Immanuel Kant, Friedrich Nietzsche e Theodor
Adorno.
Desde 1988, é Rubens quem, ao lado de Samuel Leon e Beatriz Costa, da Editora Iluminuras, está
promovendo o segundo impulso de tradução de filosofia no Brasil. Tudo começou com a seleção e
tradução, pelo próprio Rubens, dos fragmentos do poeta e filosófo romântico Friedrich von
Hardenberg, mais conhecido como Novalis, denominados Polén: Fragmentos, Diálogos, Monólogo.
Este livro selou a certidão de nascimento da Biblioteca Pólen, que é dirigida por
Rubens e editada pela Iluminuras. A partir de então, foram publicados 11 livros, o último dos
quais é Conversa sobre a Poesia, do poeta e crítico romântico Friedrich Schlegel. 0
traço característico da Pólen é um entrelaçamento entre filosofia, escrita refinada e
traduçõs precisas. Seu sucesso editorial deve-se em parte ao fato de que nos últimos anos houve
uma fermentação de traduções no Departamento de Filosofia da USP.
Abaixo, entrevista que Rubens concedeu com exclusividade ao Cultura, em sua casa.
Cultura: Como surgiu a Biblioteca Pólen?
Rubens Rodrigues Torres Filho: 0 principal impulso para se fazer a coleção foi a realização
do livro com os escritos filosóficos do Novalis. Novalis é tradicionalmente veiculado com a imagem
de um poeta romântico, mas ele tem na verdade uma obra de inspiração filosófica que seriam esses
fragmentos de Pólen e uma série de outros.
Capa de Pólen
Novalis
A idéia de encontrar a filosofia aliada com uma preocupação com a escrita conduz à idéia
de se encontrar a filosofia em seu próprio nascedouro. 0 modelo mais claro para se pensar isso
são os Diálogos de Platão. Eles são notáveis, e é dali que nasce a reflexão ocidental
inteira. Se você percorrer a história da filosofia pensando nisso, tem, por exemplo, no século
18, no Século das Luzes, Rousseau, Diderot, Voltaire e outros. São todos escritores, e há alguma
espécie de fermentação do pensamento filosófico. Então seria um pouco por aí, encontrar filosofia
nesse estado nascente. Isso me fez pensar na idéia desses livros, e por isso considero que essa
coleção não é disciplinarmente filosófica. Esses livros não se caracterizam pela filosofia como
uma disciplina, como uma coisa limitada por fora, mas pelo conhecimento interno da filosofia onde
ela aparece. Foi um pouco essa a idéia que norteou a escolha dos textos seguintes. A idéia, enfim,
de que os textos nos quais a filosofia se origina não são necessariamente textos técnicos, acadêmicos.
É a consciência de que realmente existe muito material, muita coisa, inclusive clássicos, que
são às vezes pouco conhecidos, e que no entanto têm interesse tanto para quem estuda filosofia
como especialista, como para quem não está envolvido profissionalmente com a filosofia mas tem
o interesse humano, universal, por problemas filosóficos.
Cultura: É um modo de se inserir a filosofia na cultura?
Torres Filho: É isso, exatamente.
Cultura: Observa-se nas edições da Biblioteca Pólen um cuidado muito grande com a
tradução. Isso faz parte da linha editorial?
Torres Filho: Sim, isso é central. Quando eu conversei com o Samuel Leon, da Iluminuras,
a respeito do projeto, uma das primeiras coisas que eu acentuei é que seriam livros que teriam
o nome do tradutor na capa, e que a responsabilidade do tradutor seria central. Seriam, de
preferência, textos onde o tradutor fosse também o autor da introdução. 0 primeiro aspecto
disso, a responsabilidade do tradutor, está no fato de que a linguagem da filosofia exige uma
exatidão sem a qual o próprio pensamento se perde. Outro ponto é que a coleção pretende mostrar
a filosofia na escrita. Eu procuro, sempre que possível, que o texto seja bilíngüe. Alguns são.
No livro do Schlegel que saiu há pouco, a parte dos fragmentos é bilíngüe. Como com Hesíodo.
Os dois textos do Hesíodo que publicamos são bilíngües. Na medida do possível, sempre procuramos
manter esse tipo de cuidado.
Cultura: Como é que se dá, mais precisamente, a escolha dos livros?
Torres Filho: Cada um desses textos isoladamente tem uma justificativa. Por exemplo, o
ensaio do Derrida sobre o Fédon de Platão tem a ver justamente com a idéia do esquecimento
da escrita na filosofia, que ele tenta reverter. Há relação entre um livro e outro. Ao lado
desse texto do Derrida, existe um projeto que eu não consegui realizar ainda. Tenho planejado a
publicação de uma tradução que o Cavalcante fez do Fédon, com uma introdução grande onde
ele inclusive discute as teses do Derrida. 0 texto do Schlegel tem uma ligação, um eco, com o
texto do Novalis inicial e com o texto do Walter Benjamin. 0 texto do Benjamin que publicamos é
uma espécie de releitura filosófica dos românticos, e quase todo ele é costurado a partir do
Schlegel. Então, a coleção é mais costurada internamente do que se fosse uma simples multiplicidade
de textos ilustrando um problema. É uma espécie de diálogo entre um texto e outro. Quando, por
exemplo, reunimos os ensaios do Lebrun a respeito de Kant, buscamos dar uma leitura contemporânea
daqueles textos que eram referência para os autores que escreveram nessa época que tentamos cercar.
0 próximo volume da coleção será um trabalho do Ricardo Ribeiro Terra que reúne as duas Introduções
à Crítica do Juízo do Kant. É um trabalho comparativo a respeito de outro núcleo de reflexão
em torno do qual essas coisas se organizam. Então, a idéia é essa, não é propriamente uma série,
uma multiplicidade, mas uma espécie de diálogo interno entre os textos agrupados dessa maneira.
Cultura: Existem outros projetos?
Torres Filho: É uma coisa meio indeterminada, porque realmente falta muita coisa interessante.
Por exemplo, voltando aos gregos, já está mais ou menos acertada uma tradução nova do De Anima,
do Aristóteles, que foi inicialmente uma tese de mestrado orientada pelo Giannotti, de Maria Cecília
Leonel Gomes dos Reis. Eu mesmo estou pretendendo fazer algumas traduções de Schelling, alguma
coisa compatível com esse formato e que ao mesmo tempo dê uma primeira abordagem ao tipo de pensamento
e ao estilo da filosofia schellinguiana. É uma coisa que falta, você tem o volume da Abril mas
ainda falta muita coisa.
Cultura: Quais textos do Schelling?
Torres Filho: Seria um conjunto de preleções que constituem a introdução à sua filosofia
positiva. Quero comentar um texto em que ele explica a diferença entre a filosofia positiva e a
filosofia negativa, que é a parte do ultimo Schelling, onde o Schelling chegou. E um outro
sobre o idealismo, que seria um dos primeiros livros do Schelling. Seriam dois volumes, onde eu
quero mostrar as duas pontas para que se veja a curva da evolução.
Cultura: Seria o texto Do Eu como Princípio da Filosofia?
Torres Filho: Eu penso também em traduzir o Do Eu, acho que seria um bom texto
também, mas no momento estou pensando naquele texto sobre o idealismo na Doutrina da Ciência,
que é um texto menos técnico. São ensaios de revista, quase que de propaganda, onde ele apresenta
de uma maneira muito plástica o que entendia ser o novo ponto de vista na introdução do idealismo
transcendental. Tem um Posfácio que é coisa mais clara que eu já vi sobre a noção de postulado
em filosofia, que ele tira a partir do Kant e da geometria. 0 Do Eu seria talvez um texto
interessante, mas no sentido de ser muito técnico.
Cultura: Já há alguns anos parece ter tomado fôlego a tradução de filosofia no Brasil.
0 senhor avalia isso assim?
Torres Filho: Sim. Eu acho que sim. Eu gostei muito de ver que saiu a tradução que o
Nicolino Simone Neto, que é um germanista e me auxiliou na revisão da tradução do Novalis, fez
de Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, do Goethe. Os estudantes de filosofia, ao
contrário de alguns anos atrás, quando eles sempre recorriam no começo às traduções francesas,
depois nem sequer mais as francesas, mas sim as espanholas, estão voltando, especialmente no
nível de pós-graduação, a ter um interesse pelo contato direto com os textos originais. Tem
muito mais gente que sabe alemão agora para ler um texto de filosofia na USP do que há cinco
anos atrás, com certeza. Nesse caso, a exigência de que a tradução seja exata teve um efeito
contrário, ela atraiu para o original. Em vez de as pessoas considerarem que já estão com a
coisa pronta e mastigada, elas têm a curiosidade de ver exatamente como é que é no original.
Cultura: Produziram-se muitas teses que são traduções?
Torres Filho: É, e isso como política educacional é uma coisa que eu vejo como muito
salutar. É muito mais comum hoje que uma tese de mestrado seja uma tradução com introdução e
notas, uma tradução comentada, e que o ensaio mesmo fique para o doutorado. Isso é importante,
primeiro porque é óbvio que em um primeiro momento é melhor você traduzir, é como se você
afinasse o seu instrumento. E com isso a bibliografia brasileira, que é muito pobre,
beneficia-se.
Cultura: E assim pode-se pensar na formação de uma escola de tradução no Brasil?
Torres Filho: É, no sentido informal da palavra, pode-se formar uma escola, ou ao menos
uma pequena tradição. A descoberta de algumas soluções de tradução em vez de ser uma proeza
intelectual de alguém torna-se uma produção coletiva, outras pessoas começam a usar e isso cria
um padrão.
Cultura: Penso essa evolução no interior de autores específicos, como talvez tenha
sido o caso do Tractatus Logico-Philosophicus, do Wittgenstein. A primeira tradução, de 1969,
é do Giannotti. Em 1993, o Luiz Henrique Lopes dos Santos, que era aluno do Giannotti, fez uma
nova tradução, e quem sabe daqui a alguns anos o João Virgí1io, que é orientando do Luiz, venha
a fazer outra.
Torres Filho: É verdade. A atividade de traduzir vai amadurecendo com o tempo. A revisão
que o Márcio Suzuki fez da tradução do Roberto Schwarz da Educação Estética do Homem é
um exemplo. 0 Ricardo Terra fez um artigo sobre isso. É uma referência interessante porque ele
juntou as observações acerca do mestrado do Márcio Suzuki e das diferenças entre as duas edições,
a antiga que o Roberto tinha feito e a nova que o Márcio mexeu, para justamente fazer um comentário
sobre esse tipo de evolução. É um texto que ele publicou na revista Novos Estudos, do Cebrap,
que se chama A Atualidade de Schiller. Nesse artigo ele se refere a nossa coleção nesse
contexto.
Cultura: Existem também as novas traduções do francês de Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
Torres Filho: Sim. A tradução de textos filosóficos franceses tem também muitos problemas.
Traduzir o Derrida, por exemplo, é uma coisa bastante complicada. 0 Rogério da Costa, que traduziu
o Derrida, é um exemplo de trabalho nesse sentido. Esse trabalho ajuda a criar uma linguagem filosófica
brasileira.
Cultura: Como é, mais especificamente, o entrelaçamento entre os textos da Biblioteca Pólen?
Torres Filho: Existem dois pontos de vista. Um é essa coisa da escrita. A filosofia se
faz na linguagem e se transmite através da linguagem, então ela funciona como uma invenção e não
é necessariamente representativa. Existe por exemplo a parte do livro do Schlegel sobre a mitologia,
que ao mesmo tempo espelha a vivência dos românticos como grupo, aquela idéia de filosofar em
conjunto, e antecipa a filosofia da mitologia que vai ser a culminância da reflexão do Schelling 40 anos
depois. Não é a preocupação de representar o mundo, mas de inventar novas formas de pensamento
e de se criar problemas. E o outro aspecto seria a coisa da leitura, como é que os autores se
lêem entre si, como é que o Benjamin lê o Schlegel, por exemplo, e como é que o Schlegel formulou
o que o Schelling iria mais tarde fazer. Seria um entrelaçamento que teria esses dois pólos.
Cultura: 0 da produção e o da transmissão?
Torres Filho: É, exato. A produção e a transmissão, e uma intercomplementariedade entre
esses dois pólos. Um não acontece sem o outro.
Cultura: É um modo de inserção do autor em seu tempo, algo muito mais trabalhoso do que
o tratamento unicamente estrutural das obras. Isso é uma coisa em que o Lebrun insiste muito.
Torres Filho: Isso. Mas ao fazer uma das coisas você não pode perder a outra de vista.
Mas é verdade, o Lebrun realmente insiste muito nisso. Além de você saber explicar estruturalmente
o texto, você tem que saber contextualizá-lo. E é uma coisa que o Lebrun faz genialmente, ele tem
uma cultura bastante ampla e muita agilidade. Mas, enfim, eu gostaria que fosse possível que se tivessem vários
ângulos de iluminação para essas leituras, que realmente não fosse uma coisa de mão única, de
uma perspectiva só, porque o perigo é você com algo muito limitado cair em uma coisa muito
dogmática, e assim perder a dimensão crítica.
Cultura: E no momento, com o que o senhor está trabalhando? Tradução? Poesia?
Torres Filho: Eu tenho trabalhado bastante, quase exclusivamente, com os textos do último
Schelling, que são as obras Filosofia da Mitologia e Filosofia da Revelação. E tenho
mexido um pouco com textos teóricos do Hölderlin. Estou trabalhando essas coisas para meu uso
próprio, mas alguns desses textos eu gostaria de traduzir e incorporar a essa coleção, é uma
das possibilidades desse projeto.
Cultura: Como é o texto do Schlegel, lançado há pouco?
Torres Filho: 0 Conversa sobre a Poesia é um texto do Schlegel que saiu na
revista Athenaeum, onde ele reproduz sob nomes fictícios um diálogo imaginário entre o
grupo de Jena. É uma discussão de pontos de vista a respeito da cultura, da evolução da civilização,
das artes e da poesia. E, ao lado desse texto, para complementá-lo, existe um conjunto de
fragmentos do Schlegel. É um clássico, é referência até hoje. É o mesmo ambiente em que nasceu
o Pólen do Novalis. E é referência direta para o texto do Walter Benjamin, 0 Conceito
de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. 0 Benjamin trabalha muito com esse texto na montagem
de sua teoria.
(O Estado de S. Paulo, 12 de novembro de 1994)
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